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Author: mentesanta

A BÍBLIA EM TRADUÇÃO


Como os ouvimos falar em nossas próprias línguas as grandezas de Deus? (At 2.11)


De que serve a pureza da linguagem, se a inteligência do auditório não acompanha? Não temos absolutamente nenhuma razão de falar, se aqueles a quem nos dirigimos para nos fazer compreender não compreendem o que dizemos. (AGOSTINHO, A doutrina cristã, 1V,10.24, p.230)

A fé bíblica é essencialmente missionária (At 1.8). Diante disso, nada mais natural que se traduza a Bíblia para diferentes línguas. Em outras religiões, espera-se que os fiéis aprendam uma outra língua para ler o livro sagrado. No caso do islã, por exemplo, o Alcorão só pode ser lido em árabe. Com a fé bíblica é diferente: traduz-se desde o tempo de Esdras e Neemias, se não antes.

O processo de tradução


Traduzir é, a rigor, passar um texto para outra língua. Isto parece fácil e simples, mas não é. Existe até a história de uma senhora norte-americana que, em sua ingenuidade, ao se aposentar, entrou em contato com uma agência de tradução da Bíblia, pedindo que lhe enviassem o dicionário de uma língua indígena, pois, como agora dispunha de tempo, poderia ajudar no trabalho de tradução das Escrituras. Mal sabia ela que um texto é mais do que um conjunto de palavras isoladas e que traduzir é muito mais do que simplesmente substituir palavras!

O que se diz numa língua pode, a princípio, ser dito em qualquer outra língua. Não que seja um processo simples. Há alguns termos que são de difícil tradução, como, por exemplo, a palavra "saudade"35. Também existem textos que representam grande desafio para o tradutor, como, por exemplo, a obra de James Joyce.

Nem sempre o texto traduzido diz exatamente a mesma coisa que o original. Em muitos momentos o que se consegue é uma "semelhança interpretativa". O neto de Jesus, filho de Siraque, que, no segundo século a.C, traduziu a obra do avô para o grego, havia se dado conta disso. Ele confessou:


Fiz todo o possível para traduzi-lo bem. Mas, mesmo assim, se parecer que não fui feliz na tradução de algumas passagens, peço que me desculpem. É que as coisas escritas em hebraico não têm exatamente o mesmo sentido quando são traduzidas para outra língua. Isso não acontece somente com este livro que traduzi; a própria Lei, os livros dos Profetas e os outros livros são bem diferentes quando são lidos na língua em que foram escritos. (Introdução ao Eclesiástico, texto da NTLH)


Mas não existe texto intraduzível. Como explica Paulo Rónai, alguns textos têm traduzibilidade absoluta, ou seja, deixam impressão igual em todos os leitores (RÓNAI, 1987, p.56). Já a tradução de textos literários é uma aproximação, não havendo uma tradução perfeita e definitiva. O caso extremo é a poesia. Segundo Robert Frost, "poesia é aquilo que se perde na tradução" (RÓNAI, 1976, p.79). A Bíblia tem muito de literatura,especialmente os trechos poéticos. Isto talvez ajude a explicar o constante surgimento de novas traduções.


O panorama lingüístico atual


Existem em todo o mundo, hoje, aproximadamente 6.700 línguas vivas. Calcula-se que, no século XV, esse número chegava a quinze mil36. Essas 6.700 línguas chegam, na verdade, a 41 mil, caso se levar em conta os dialetos, que são formas locais de uma língua. A metade dessas línguas é falada na região da Ásia e do Pacífico, segundo divisão do mundo em quatro regiões, adotada pelas Sociedades Bíblicas Unidas. Aproximadamente 31% delas são faladas na África; 15% nas Américas; e só 4% na Europa. Na verdade, 96% da população mundial conseguem se comunicar fazendo uso de apenas quatro línguas diferentes.

A língua mais falada no mundo é, hoje, o mandarim (chinês), com uns 900 milhões de falantes. Em segundo lugar vem o espanhol, com quase 400 milhões. Em terceiro lugar, o inglês, seguido de bengali e hindi. O português aparece em sexto lugar, seguido de russo e japonês.

Na Europa, 730 milhões de pessoas falam 25 línguas vivas. Nas Américas, 830 milhões de pessoas falam mil línguas diferentes. No Brasil, apesar da impressão de sermos um país unilingue, são faladas umas 170 línguas indígenas. Somadas à situação das populações alofônicas (italianos, alemães, ucranianos, japoneses, árabes, etc), chega-se perto de 200 línguas faladas no Brasil37.

Traduções da Bíblia em perspectiva histórica


A primeira tradução bíblica literária, isto é, escrita, foi a grega, feita nos três últimos séculos antes de Cristo e conhecida como Septuaginta ("Versão dos Setenta").

Na era do NT, as traduções foram surgindo na medida em que a fé cristã ia avançando pelo mundo. Traduções latinas, por exemplo, começaram a aparecer por volta de 200 d.C. Assim, em 1804, quando iniciou o movimento das sociedades bíblicas, com a fundação da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, a Bíblia tinha sido traduzida para 68 línguas. Em 1940, a tradução da Bíblia alcançou 1.000 línguas38. No ano de 2003, a Bíblia, ou trechos dela, estava traduzida para 2.355 línguas diferentes.


A tradução de João Ferreira de Almeida


A Bíblia em português foi a décima terceira tradução numa língua moderna, depois da Reforma do século XVI.

O primeiro a traduzir a Bíblia dos originais (grego e hebraico) para a língua portuguesa foi João Ferreira de Almeida, pastor da Igreja reformada holandesa. A tradução foi feita no campo da missão, longe de Portugal e do Brasil, pois em terras católicas a leitura da Bíblia era proibida aos leigos.

João Ferreira A. de Almeida nasceu em Torre de Tavares, perto de Lisboa, em 1628, e deixou Portugal aos 14 anos de idade, indo para a Holanda e depois para Malaca, nas índias Orientais. Depois de um bom tempo, Almeida foi ordenado ao ministério da Igreja Reformada, sendo pastor na cidade de Batávia, na ilha de Java, atualmente a Indonésia. Almeida era um homem extremamente zeloso e um polemista. Seu lema era perficit qui perseverai ("termina quem persevera"), e contemporâneos dele falavam de "suas práticas cabeçudas" (HALLOCK & SWELLENGREBEL, 2000, p.115).

Aos 16 anos de idade, Almeida já havia traduzido o Novo Testamento do latim ao português. Sua tradução feita do original grego foi impressa em 1681, na Holanda, sob o título: "O Novo Testamento isto he o novo concerto de nosso fiel Senhor e Redemptor Iesu Christo traduzido na Lingua Portuguesa". Essa tradução, que depois foi integralizada com o acréscimo do Antigo Testamento, foi publicada várias vezes em Batávia, na Holanda, em Londres e no Rio de Janeiro.

O Novo Testamento Grego de que Almeida dispunha reproduzia o assim-chamado textus receptus ("texto recebido"), segunda edição de 1633, publicada pelos irmãos Elzevir. Em alguns pontos, o textus receptus é mais longo do que o texto grego que hoje é aceito como original em edições críticas como o Nestle-Aland e o The Greek New Testament. Isto explica o material entre colchetes, no NT (e apenas ali) da Almeida Revista e Atualizada: constava do texto grego que Almeida conhecia, mas hoje não mais faz parte do texto grego aceito como original.

Almeida morreu em 1691, com 63 anos, deixando a tradução do AT inconclusa: parou em Ezequiel, capítulo 48, versículo 21. Quem concluiu a tradução foi um colega holandês de Almeida, chamado Jacobus op den Akker. A Bíblia toda só foi publicada em 1753.

Essa tradução, com atualização ortográfica e pequenas modificações em relação ao primitivo Almeida, é conhecida como Almeida Revista e Corrigida (ARC).


Almeida Revista e Atualizada (ARA)


Em 1943, as Sociedades Bíblicas Unidas decidiram publicar uma revisão da tradução de Almeida. Esta tarefa foi continuada pela Sociedade Bíblica do Brasil, que foi fundada, no Rio de Janeiro, em 1948. Feita a partir da décima sexta edição do texto grego editado por Erwin Nestle, que foi sendo reimpresso sem alterações até à 25a edição, a tradução do NT da Almeida Revista e Atualizada foi publicada em 1952. A revisão do AT foi concluída em 1956. A Bíblia toda foi publicada em 1959.

Entre as modificações em relação ao Almeida antigo estão as seguintes: diante da constatação de que muitas pessoas somente terão contato com o texto sagrado através de uma leitura pública da Bíblia, não podendo ou não querendo ler o texto elas mesmas, deu-se atenção especial à maneira como o texto soa numa leitura em voz alta. Assim, foram eliminados cerca de dois mil tipos de cacófatos ou desagrados cacofônicos. Entre esses estão os "tatus" ("Volta tu também", Rt 1.15), as "alices" ("e todo o Israel ali se achou", Ed 8.25), etc. Foi também para evitar um desagrado cacofônico ("avós") que se passou a usar, aqui e ali, "a vós outros". Um exemplo dessa cacofonia aparece em Êx 24.14: "ficai aqui até que nos tornemos a vós"! Na ARA, ficou assim: "Esperai-nos aqui até que voltemos a vós outros"39.

Na ARA, o nome de Deus ("Javé"), no Antigo Testamento, aparece em versalete: SENHOR. Além disso, a primeira letra da palavra que inicia um parágrafo foi impressa em negrito. Também os textos poéticos passaram a ser impressos como poesia.

No cômputo geral, ARA difere do Almeida antigo (recensão de Londres) em 30% do texto. Ao todo, ARA emprega uns 8.400 vocábulos diferentes, excluindo nomes próprios.

Duas figuras de proa no trabalho de revisão e atualização de Almeida, no Brasil, foram o dr. Paul W. Schelp, eminente biblista e professor do Seminário Concórdia de Porto Alegre, e o reverendo Antonio de Campos Gonçalves, renomado vernaculista, à época radicado no Rio de Janeiro.


Comparação entre os três textos de Almeida


O texto de Nm 24.3-6, abaixo, permite que se perceba como o texto de Almeida mudou desde a primeira impressão (1748) até a edição revista e atualizada.

1a impressão de Almeida

Falla Billeam filho de Beor. e falla o varão de olhos abertos. Falla o que ouve os ditos de Deus, o que vé a visaõ do Todo-podcroso. o enlevado, e o descuberto de olhos. Quam boas as tuas tendas, o Jacob! Tuas moradas 6 Israel! Como ribeiros se esprayaõ. como hortas junto a os rios: como árvores de sândalo Jehovah os plantou, como cedros junto á agoas.

ARC

Falla, Balaão, filho de Beor, e falla o homem d'olhos abertos. Falla aquelle que ouviu os ditos de Deus, o que vê a visão do Todo-poderoso caido em extase d'olhos abertos. Que boas as tuas tendas, ó Jacob! As tuas moradas, ó Israel. Como ribeiros se estendam; como jardins ao pé dos rios: como árvores de sândalo o Senhor os plantou, como cedros junto as águas.

ARA

Proferiu a sua palavra e disse: Palavra de Balaão, filho de Beor, palavra do homem de olhos abertos; palavra daquele que ouve os ditos de Deus, o que tem a visão do Todo-Poderoso e prostra-se, porém de olhos abertos: Que boas são as tuas tendas, ó Jacó! Que boas são as tuas moradas, ó Israel Como vales que se estendem, como jardins à beira dos rios, como árvores de sândalo que o SENHOR plantou, como cedros junto às águas.

A Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH)


A mais recente tradução bíblica lançada pela Sociedade Bíblica do Brasil é o texto na linguagem de hoje. O projeto teve início em 1966, sendo que o NT saiu do prelo em 1973. A Bíblia completa foi publicada em 1988. Em 2000, foi lançada a Nova Tradução na Linguagem de Hoje, que é, a rigor, uma segunda edição desse texto, pois consiste em alguns pequenos retoques no AT (SENHOR em lugar de "Deus Eterno", aleluia em lugar de "louvem o Deus Eterno", etc.) e uma revisão mais aprofundada da tradução do NT.

Uma das diferenças mais palpáveis entre a NTLH e a Almeida diz respeito ao vocabulário. Enquanto Almeida espera que seu leitor conheça mais de oito mil vocábulos diferentes, na NTLH esse número cai para pouco mais de quatro mil. Isso fica dentro de uma faixa aceitável, pois a maioria dos falantes da língua usa, de forma ativa, apenas uns três mil vocábulos, mesmo que seja capaz de entender, de forma passiva, muito mais do que isso40.


Uma tradução em linguagem comum


A NTLH é uma tradução em linguagem comum. Embora linguagem comum seja, por vezes, entendida como sinônimo de linguagem simples, o conceito não é exatamente idêntico. Linguagem comum é a linguagem que a maioria da população de um lugar, de norte a sul, de leste a oeste, tem em comum. Isto significa que regionalismos não fazem parte de uma tradução dessas. O mesmo se aplica ao linguajar erudito, inacessível às pessoas de pouca escolaridade, e à linguagem vulgar, inaceitável para os mais eruditos. Na prática, a linguagem comum é aquele meio-termo que é acessível às pessoas menos instruídas e que é aceitável às pessoas mais eruditas.


Outras características da NTLH


A NTLH também se caracteriza por dividir o texto em unidades menores. Um exemplo disso é o que acontece em Ef 1.3-14, que é, possivelmente, um dos períodos mais longos do Novo Testamento: foi dividido em cinco parágrafos. Além disso, ela torna explícitos dados que estão implícitos. Exemplos disso são "Espírito de Deus", onde normalmente se lê "Espírito", e "Escritura Sagrada", onde, a rigor, o original traz apenas "Escritura"41. Igualmente tende a transformar construções passivas em ativas, como, por exemplo, em Mt 5.4: "serão consolados" foi transformado em "Deus as consolará".

Outra característica da NTLH é o processo de transmetaforização, ou seja, a tradução por outra metáfora, sempre que a metáfora bíblica for obscura para o leitor brasileiro. Assim, o "canto do eirado" passa a ser o "fundo do quintal", em Pv 21.9. Quando não há equivalente satisfatório para a metáfora, adota-se a desmateforização, isto é, a eliminação da metáfora por completo. Isto acontece, por exemplo, em Pv 5.15, onde "beber a água da própria cisterna" foi traduzido por "seja fiel à sua mulher". Um exame do contexto revela que é exatamente isto que se quer dizer42.

Princípios de tradução


Num nível conceituai, a grande diferença entre Almeida e NTLH tem a ver com princípios de tradução. Almeida opera com o que se chama de princípio de equivalência formal. Procura reproduzir não apenas o sentido do texto, mas, na medida do possível, também a forma do original bíblico. Um exemplo é a ordem das palavras. Em Gn 1.1, "criou Deus" reflete a ordem das palavras no hebraico. Em português se diz: "Deus criou". A Bíblia na linguagem de hoje, por sua vez, aplica o princípio de equivalência funcional, que em tempos passados era chamado de princípio de equivalência dinâmica. Aqui, se traduz o sentido, deixando de lado as estruturas originais. O alvo é produzir no leitor/ouvinte de hoje o mesmo impacto e efeito que o original produzia nos seus leitores/ouvintes.

Esse debate em torno de princípios de tradução aparece, no mais das vezes, sob a roupagem de discursos e argumentações em torno do que deve e não deve ser traduzido e sobre fidelidade em tradução. Quanto ao que deve ser traduzido, as opções parecem ser as seguintes: traduzir as palavras ou a forma; traduzir a mensagem ou o conteúdo; ou traduzir tanto a mensagem quanto as palavras.

Muitos são os que defendem uma tradução literal da Bíblia. Não é o mesmo que tradução literária. Na verdade, o que se entende por tradução literal é, caso for levado às últimas conseqüências, isto é, caso se fosse dar atenção aos seus mais ardorosos defensores, totalmente impossível. Ao se traduzir, mexe-se no texto. Quem não quiser que se mexa no texto, precisa ficar com o original. No caso da Bíblia, para ser 100% formal ou literal, seria preciso traduzir ao pé da letra todas as expressões idiomáticas, para citar apenas um exemplo. Nenhuma tradução da Bíblia faz isso. Em outras palavras, nenhuma tradução é totalmente formal ou literal. Algumas são mais, outras são menos. A King James Version, de 1611, por exemplo, é 95% formal. Isto significa que, em 5% dos casos, ela opta por uma tradução semântica ou tradução do sentido. Dá-se isto no caso das expressões idiomáticas. A New International Version (NIV, de 1978) é 44% semântica; no restante ela é formal. Já a Today's English Version, a primeira tradução do tipo "linguagem de hoje", é 83% semântica (In: Van Der Watt, 2002, p.257).


A questão da fidelidade


A questão da fidelidade pode ser proposta da seguinte forma: fiel a quem ou a quê? Numa das extremidades está a fidelidade ao autor; na outra, a fidelidade ao leitor. No meio, existe toda uma gama de variações. Em todo caso, traduções mais formais optam por fidelidade ao autor ou texto original. Traduções menos formais optam por fidelidade ao leitor ou à língua alvo. Traduções que aderem às palavras da língua fonte (o original) são chamadas de traduções identificadoras ou traduções "exóticas". Quando se obedece aos usos da língua alvo, diz-se que a tradução é naturalizadora ou domesticada.

Um exemplo de tradução que adere à língua fonte é a Vulgata de Jerônimo. A rigor, numa carta escrita a Pamáquio, em 395 d.C., Jerônimo se declarou todo a favor da tradução do sentido e contra uma tradução palavra por palavra. Abriu, no entanto, uma exceção: as Escrituras Sagradas, onde, segundo ele, até mesmo a ordem das palavras é um mistério (JEROME, pp.112-119). Agostinho achou que a Vulgata era por demais formal, ao menos na tradução de 1Ts 3.7: consolati sumus fratres in vobis ("consolados somos irmãos em vós"). Aqui, Jerônimo seguiu bem de perto a ordem das palavras no grego. Agostinho ousou criticar Jerônimo, sugerindo, ao mesmo tempo, uma tradução mais adequada:


É duvidoso se é preciso entender a palavra fratres, no vocativo, ou hos fratres, no acusativo. Por certo, nenhum desses sentidos é contrário à fé. (...) [C]onsultado o texto grego, vê-se que fratres é vocativo. E se o tradutor houvesse tido a idéia de colocar: (...) consolationem habuimus, fratres, in vobis tivemos o consolo em vós, irmãos"), ele teria sido menos escravo da tradução, mas haveria menos dúvida sobre o sentido (AGOSTINHO, A doutrina cristã, III, 4.8, p.157).


Na prática, o tradutor dificilmente consegue ser fiel a ambos: autor e leitor. Existe até um trocadilho italiano que fala disso: traduttori, traditori ("tradutores, traidores"). E um autor desconhecido disse certa vez, não deixando de revelar certa perspectiva machista, que "as traduções são como as mulheres: quando fiéis, não são bonitas; quando bonitas, não são fiéis".

Tradução é uma ciência e também uma arte. É um jogo de perdas e ganhos. Há traduções que nem parecem traduções. Outras, como disse Goethe, "excitam em nós uma curiosidade irresistível para conhecermos o original" (RÓNAI, 1976, p.5). E hoje existem teóricos que dizem que esse é, de fato, o objetivo da tradução. Defendem, em outras palavras, as traduções exóticas.


A necessidade de novas traduções e por que muitos as rejeitam.


Novas traduções e revisões de traduções existentes se fazem necessárias por quatro motivos (NIDA, 1960, p.200):


  1. Línguas são organismos vivos. Como tais, mudam, a começar pelo sentido de palavras. Um exemplo disso é "caridade", termo que aparece, na Revista e Corrigida, em ICo 13, e que foi mudado para "amor" na Almeida Revista e Atualizada.


  2. O texto original disponível hoje é melhor do que o texto que se tinha no passado. Isto vale tanto para o Antigo Testamento, com as descobertas dos pergaminhos do Mar Morto, quanto para o Novo Testamento, com as muitas descobertas de manuscritos no período que vai do ano de 1800 até aos nossos dias.


3) A exegese avança. Continuamos progredindo na compreensão de textos bíblicos, sendo que muitos ainda não compreendemos de todo. Para esse avanço, a arqueologia bíblica prestou grandes serviços. No caso do NT, não apenas foram descobertos muitos novos manuscritos, mas também, a partir de documentos escritos em grego coinê, foi possível uma melhor compreensão da natureza do grego do Novo Testamento. Também se conseguiu determinar o sentido de um maior número de termos gregos que aparecem no NT, tanto assim que a lista de palavras consideradas "próprias do NT" no começo do século XX diminuiu drasticamente ao longo do mesmo século, à medida que foram sendo descobertos papiros e outros artefatos da época do Novo Testamento43.


4) Mudam os conceitos de comunicação e também a teoria da tradução. Em outras palavras, a ciência e a arte da tradução também progridem. Nunca se estudou tanto a teoria da tradução como em nossos dias. A obra da tradução bíblica, em especial a teoria de Eugene A. Nida, foi uma grande propulsora desses estudos.


Quanto aos motivos que levam pessoas a rejeitar novas traduções da Bíblia, preferindo as versões mais antigas, podem ser relacionados os seguintes:


  1. As traduções existentes levaram as pessoas a pensar que uma tradução da Bíblia precisa ser, até certo ponto, incompreensível. Um ar de mistério parece que faz bem. Se a Bíblia tem uma linguagem muito direta, nem parece Bíblia! Um texto antiquado (a tradução) parece combinar melhor com o texto antigo (a Bíblia), sem falar que parece ter mais autoridade.


2) A familiaridade com o texto de determinada tradução - em muitos casos o texto foi memorizado - é fator de resistência a novas traduções.

3) A insegurança dos líderes e pastores das igrejas, que não sabem explicar ao certo por que o texto é diferente. Na verdade, as diferenças podem ser de três ordens: 1) diferenças por causa de um texto hebraico ou grego diferentes; 2) diferenças de interpretação (e toda tradução é fruto de um processo de interpretação); 3) diferenças de estilo, ou seja, a mensagem é expressa de formas diferentes.


Notas:


35 Segundo Moacyr Scliar, Saturno nos trópicos, pp. 148-51, a saudade é o mais luso dos sentimentos. A noção de que saudade só existe em português vem do rei Dom Duarte, do começo do século XV Isso não é totalmente exato, embora exemplos de outros idiomas não tenham "nem de longe, na economia dos respectivos idiomas-irmãos, a importância e a freqüência da saudade na língua portuguesa; nem tão pouco o quid, o não-sei-quê de misterioso que lhe adere" (Carolina Michaelis de Vasconcelos). Alguém definiu saudade como "desejo da coisa ou criatura amada, tornado dolorido pela ausência". Temos saudade daquilo que gostamos e gostamos de ter saudade, diz Scliar (p.150).


36 Diz-se que, hoje, morre uma língua a cada duas semanas. Uma língua morre quando morre o último falante da mesma. Responsáveis diretos por isso são guerras e genocídios; processos migratórios, e o imperialismo cultural. Em nosso caso específico, calcula-se que no início da colonização "a população brasílica está entre os dois extremos de 4,5 e 2,5 milhões de indígenas, que deviam, de fato, falar entre 2-1,5 mil línguas" (HOUAISS, 1983, p.63).


37 Para fins de comparação, registre-se que, nos Estados Unidos, são faladas 176 línguas; na Argentina, 20.


38 Sempre é bom lembrar que nem sempre se trata da Bíblia completa traduzida para essas línguas.


39 Para mais detalhes e exemplos, confira SCHOLZ, Vílson. A tradução da Bíblia por João Ferreira de Almeida e suas revisões. Igreja Luterana, v.64, junho de 2005, pp.7-29.

40 Uma língua dita "natural", isto é, indígena, geralmente tem menos de 3 mil vocábulos, ao passo que uma língua de cultura, como o português, pode chegar a 400 mil vocábulos (HOUAISS, 1983, p.75).

41 Aqui fica nítida a preocupação com a leitura em voz alta, que caracteriza também a ARA. Um "e" maiúsculo, em Espírito, não pode ser percebido pelo ouvinte, a não ser pelo contexto. "Espírito de Deus" elimina a ambigüidade. "Escritura" também é ambíguo, pois o primeiro sentido que vem à mente é "documento ou forma escrita de um ato jurídico". O uso técnico, na Bíblia, fica bem explícito em "Escritura Sagrada".


42 Para mais informações a respeito 43 Isto pode ser verificado através de uma comparação entre a lista de palavras consideradas "bíblicas" no léxico de Thayer, escrito no Final do século XIX, e a mesma lista no léxico de Bauer.dessas transformações gramaticais, confira o ponto 4 da introdução geral, na Bíblia de Estudo NTLH, publicada pela SBB.

Fonte: PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA - INTRODUÇÃO À HERMENÊUTICA COM ÊNFASE EM GÊNEROS LITERÁRIOS / Vilson Sholz


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