ARTIGO Prof. Carlos Oswaldo Pinto:


A Bíblia é um livro singular. Dentre todos os livros jamais produzidos na história da literatura humana nenhum outro foi tão traduzido, publicado, comprado e lido. Acima de todas essas peculiaridades, uma me chama a atenção. Em ambas as partes que a compõem, o Antigo Testamento e o Novo Testamento, a Bíblia começou a ser traduzida antes de estar formalmente reconhecida como um único livro.

Quando Esdras e seus companheiros levitas se dispuseram a educar o povo de Judá quanto aos aspectos essenciais da lei mosaica (Neemias 8), foi necessário traduzir os textos sagrados do hebraico para o aramaico, já que a população que retornara a Jerusalém cerca de 90 anos antes já não entendia plenamente a língua em que os livros tinham sido escritos (uma diferença próxima daquela que existe entre o português e o espanhol).

Assim é que o Cânon do Antigo Testamento ainda não estava fechado (os últimos livros ainda estavam por escrever), e já havia esforços para tornar as Escrituras mais compreensíveis ao seu público alvo.

Pouco tempo (cerca de 150 anos) depois de fechado o cânon, a formação de uma grande e cosmopolita colônia judaica em Alexandria levou os governantes do Egito a solicitarem para a grande biblioteca que ali se formava uma tradução das Escrituras hebraicas. Embora a tradição preservada na Carta de Aristeas aponte para uma tradução milagrosamente realizada em 72 dias por setenta e dois anciãos israelitas, a versão grega do Antigo Testamento foi produzida gradativamente, visando atender, ao mesmo tempo, a sede acadêmica de um monarca helenista e a demanda de uma comunidade para quem até mesmo o aramaico se tornara, na prática, incompreensível.

Ao tempo do Novo Testamento, o mesmo fenômeno aconteceu. Já escritos todos os livros, mas ainda não formalmente reconhecidos como uma biblioteca autorizada por Deus para uso da Igreja, porções significativas já estavam sendo traduzidas para diversas línguas do mundo mediterrâneo. Antes que a primeira lista canônica completa fosse divulgada, o Novo Testamento já tinha livros traduzidos para o latim, o siríaco e o copta. Nos dois séculos seguintes, dezenas de outras línguas e culturas foram enriquecidas com versões parciais ou totais do Novo Testamento. No século V uma nova versão latina, a Vulgata, surgiu para substituir a Ítala, que já tinha três séculos de existência no mundo romano.1

A Vulgata dominou o cristianismo ocidental por quase onze séculos. Tristemente, durante esse tempo, passou de um instrumento de libertação a uma ferramenta de escravidão espiritual e intelectual que o romanismo impôs à Europa e exportou aos demais continentes com o advento das grandes navegações e das conquistas.

Nos cento e cinqüenta anos que precederam a Reforma protestante os focos de anseio espiritual surgiram aqui e ali no continente europeu. Notáveis foram John Wycliffe, que lutou para dar ao povo inglês as Escrituras em sua língua pátria e morreu banido de suas lides acadêmicas e teológicas em Oxford. Seus seguidores, conhecidos como lolardos, continuaram sua tarefa de divulgar e ensinar a Bíblia no idioma popular.

A Reforma e o decorrente despertar do nacionalismo no século XVI trouxeram uma sede pela Palavra de Deus no vernáculo, e os reformadores não decepcionaram os que os seguiam. Versões vernaculares foram surgindo em inglês (William Tyndale), alemão (Martin Luther), francês (Pierre Olivetan), holandês (Nicolaas van Winghe, católico), italiano (Giovani Diodati), espanhol (Cassiodoro de Reyna) ao longo do século XVI e nos primeiros anos do século XVII. Quando este terminava, surgiu a primeira Bíblia completa em português, fruto dos labores do honrado João Ferreira de Almeida.

A tarefa continuou sem trégua. Milhares de idiomas ainda precisavam ser agraciados com a dádiva das Escrituras. Tradutores anônimos labutavam em vários continentes quando William Carey, o pai das missões modernas, iniciou sua gigantesca tarefa de levar a Palavra de Deus às etnias do subcontinente indiano. Ao morrer, havia traduzido as Escrituras em sua totalidade ou em partes para dezenas de idiomas e dialetos. Sua visão frutificou em um vasto número de Sociedades Bíblicas espalhadas por três continentes que tomaram sobre si a tarefa de traduzir e distribuir as Escrituras por todo o planeta. A tarefa continua, não apenas porque ainda há línguas que nada possuem da Palavra de Deus, mas porque aquelas que já a possuíam passam por constantes modificações, léxicas, sintáticas e semânticas, exigindo que hoje seja satisfeito o mesmo anseio presente na Praça das Águas em Jerusalém, 430 anos antes de Cristo -- ouvir e compreender claramente a santa Palavra de Deus.

Este breve histórico serve como introdução para uma tarefa apologética em favor de uma versão recente das Escrituras em nossa língua. A década de 90 viu surgir, desenvolver-se e fruir um projeto de dar ao povo de fala portuguesa uma versão da Bíblia que combinasse fidelidade aos originais, atualidade de vocabulário e gramática sem vulgaridade ou ideologismos, e facilidade de leitura. A história desse projeto foi brevemente narrada pelo Rev. Odayr Olivetti, um dos participantes do projeto, no artigo "Nova Versão Internacional da Bíblia em Português: Escorço Informativo," VOX SCRIPTURAE 3:2 (Setembro de 1993):215-226. Ao final, ele indica a expectativa de todos os participantes do projeto "de que a Nova Versão Internacional será um instrumento do Espírito de Deus para comunicar bênçãos a muitos."

Hoje, quase sete anos depois de lançado o Novo Testamento da NVI, o Antigo Testamento está sendo preparado (em fase de composição) para lançamento em breve. Igrejas, escolas e indivíduos vêm usando com proveito essa nova versão. Num mercado longe de ser saturado, a NVI se estabeleceu como uma opção significativa para quem deseja ouvir a voz de Deus na sua leitura pessoal das Escrituras.

Apesar desse sucesso, a NVI não ficou sem os seus críticos. Recentemente, dois ataques bastante sérios foram divulgados, visando o Novo Testamento publicado pela Sociedade Bíblica Internacional. Um deles foi publicado no Jornal de Apoio 63, pp. 6-7, num artigo de autoria do Prof. Donald L. Leaf. O segundo surgiu na Internet, e traz como divulgador o Pr. Emídio Viana. Em ambos os casos, fui alertado para a existência desses ataques por amigos evangélicos que utilizam a NVI-NT e ficaram preocupados com o tom e a natureza das acusações. Em benefício desses irmãos preparei respostas aos dois documentos; pelo caráter mais amplo do segundo ataque, restrinjo a ele as respostas aqui oferecidas.

A natureza global do segundo documento, amplamente circulado pela Internet, demandava algo mais que uma resposta particular. A pedidos da Sociedade Bíblica Internacional compartilho com o povo evangélico brasileiro estas observações com o propósito de tornar esse debate mais amplo, mais sereno, e mais proveitoso para a Igreja de fala portuguesa, para que possa ler com expectativa e confiança a Palavra de Deus.


Expondo Os Erros Da NVI – Uma Resposta


Os dois artigos que mencionei acima são bastante agressivos e denunciam a NVI como um instrumento de Satanás para perverter a Igreja e destruir a Bíblia.

Há um lado negativo e um lado positivo em tais documentos. Do lado negativo, seus autores acusam abertamente os tradutores da NVI de negarem a inerrância das Escrituras, de buscarem dividir, polarizar e causar contenda entre o povo de Deus, de vilipendiarem a Palavra de Deus e mutilarem o texto sagrado.

São acusações graves que merecem ser respondidas com um pouco mais de critério e conhecimento de causa do que foi demonstrado por esses autores. Do lado positivo, algumas das críticas lançadas nesses documentos têm base textual e precisam ser honestamente consideradas pelo Comitê de Revisão da NVI, que já está procedendo a algumas mudanças no texto do Novo Testamento, resultado de questionamentos e críticas francas enviados à Sociedade Bíblica Internacional.

Aqui me proponho a responder os dois tipos de críticas lançadas pelo Pastor Emídio Viana e pelo Prof. Donald Leaf, com o propósito de refutar afirmações desinformadas por ele feitas, avaliar algumas alegações sobre a teoria textual da NVI, e considerar, tanto em linhas gerais quanto em pontos específicos, suas críticas à NVI.

Correndo o riso de uma simplificação excessiva, o que se segue é um debate sobre versões em português e o texto grego em que elas se baseiam. Se este artigo servir para motivar o leitor ao estudo sério das Escrituras e um compromisso com o seu Autor, o mais importante terá sido alcançado.


A NVI Como Um Ataque às Escrituras


O primeiro parágrafo do texto EXPONDO OS ERROS DA NVI (doravante E.E.) abertamente acusa a NVI de ser um dos instrumentos de Satanás para "enfraquecer doutrinas cardeais" da Bíblia. Infere-se de tal afirmação, portanto, que teria sido produzida por pessoas comprometidas com tal agenda.

Essa afirmação velada é fruto do desconhecimento pelo autor de E.E. do fato de que cada um dos membros do Comitê de Tradução (doravante CT) ter sido selecionado por afirmar a doutrina da inerrância das Escrituras. O profundo respeito pela Palavra de Deus sempre marcou o trabalho do CT, no qual imperavam uma ética profundamente cristã e total repúdio a propostas de produzir uma Bíblia que contivesse os apócrifos (por mais comercialmente atraente que isso fosse), ou seguir o exemplo na New International Version britânica, que adotou uma linguagem genericamente neutra (desmasculinizando a Bíblia, atendendo aos ditames do feminismo protestante).

Em segundo lugar, o autor de E.E. dá a entender que a NVI utilizou acriticamente o chamado Texto Crítico (doravante TC) com o propósito de "enfraquecer diversas doutrinas como: divindade de Cristo, expiação por Cristo, morte vicária, etc.". Tal alegação é decididamente falsa e novamente feita sem a devida consulta às pessoas envolvidas. O CT se compunha de pessoas que unanimemente afirmavam a inspiração, a inerrância e a infalibilidade dos escritos originais, mas que sim, diferiam em suas predileções quanto ao texto a ser utilizado como base da tradução, que utilizou as línguas originais como fonte e o texto da NIV americana como parâmetro (não como base ou fonte).

Como todo comitê, o CT operava em termos de votação e quando questões textuais se nos apresentavam, eram resolvidas por um sistema de voto. Os membros do CT cuja preferência era pelo Texto Majoritário (TMaj) aceitaram o sistema sabendo das implicações de serem minoria. Fizeram-no, todavia, na certeza de que são parte de uma busca sincera por uma versão mais fiel aos originais e mais acessível ao nível de leitura de nossa população do que as atualmente em uso.

Em honestidade para com o CT e a NVI, o autor de E.E. deveria reconhecer que foram eliminados os tristemente famosos colchetes em passagens-símbolo do TC, como Marcos 16.9-20 e João 7.53-8.11. Tal porém, não aconteceu; antes a ironia e a culpa por associação continuaram. Deveria reconhecer ainda que foram evitados comentários do tipo "os melhores manuscritos" e "os manuscritos mais antigos," que são típicos dos defensores do TC e de obras contemporâneas sobre crítica textual, e cuja exclusão das notas de rodapé da NVI foi votada num grupo onde os partidários do Tmaj eram minoria. Isso testemunha que não houve uma adoção automática do TC.

Além do mais, o autor do E.E. usa o expediente desleal de impingir à NVI brasileira o prefácio da NIV americana, que definitivamente adotou o TC (seria mais correto falar de "um TC") e uma abordagem eclética. Conquanto o CT da NVI tenha usado uma abordagem eclética nas passagens onde foi chamado a fazer decisões de crítica textual, esse ecletismo concedeu ao TMaj muito mais prestígio que qualquer das outras modernas traduções (não meras adaptações de antigas versões) brasileiras. De passagem, o mesmo se pode dizer para o Antigo Testamento, onde o Texto Massorético foi levado extremamente a sério como base para a NVI.

Exacerbando seu ataque, E.E. diz que a presença de notas de rodapé (que a NVI utiliza com muita economia em relação à NIV) é "um ataque frontal à doutrina da preservação." Talvez o autor de E.E. considere que somente acreditam na doutrina da preservação aqueles que neguem a existência de variações textuais, ou que acreditem que "Deus preservou sua Palavra através do Textus Receptus," frase com que encerra seu libelo. De igual modo, sugere que a adoção da filosofia de equivalência dinâmica para uma tradução signifique negar a preservação das Escrituras. Trata-se claramente de misturar bananas e laranjas. Qualquer pessoa que já tenha de alguma forma lidado com exegese e tradução das Escrituras (ou qualquer outro tipo de literatura) sabe que é impossível existir plena equivalência verbal (correspondência unívoca) ao passar um texto de uma língua para outra. Mas, aparentemente, é isso que sugere o texto de E.E.

Mais ainda, nesse detalhe da equivalência dinâmica. Usando da edição do NT NVI de 1994, o pastor Emídio utiliza parte dos "elogios" em sua crítica. Vale a pena expor o erro que essa crítica representa. A citação feita em E.E. veio da pena do Pastor Antônio Gilberto, que por um lapso de memória fez tal afirmação; não lembrou ele que o CT da NVI estava expressamente proibido de utilizar equivalência dinâmica, e expressamente instruído a usar equivalência formal. Infelizmente, por falta de conhecimento desse detalhe pelo então editor, a capa da primeira edição trazia essa inexatidão, e só foi apresentada ao CT quando os livros (50.000) já estavam prontos e começavam a ser vendidos. Assim, a recomendação do Pr. Gilberto acabou ferindo os próprios princípios sob os quais o CT sempre trabalhara.


A Teoria Textual do Autor de E.E.


Fica evidente, pelo uso que faz da nomenclatura, que o autor de E.E tem certa familiaridade com as diversas teorias de crítica textual. Sua opção pelo TR é perfeitamente aceitável, mas obviamente beira as raias do fanatismo religioso quando ele afirma que "o TR foi organizado por Erasmo em 1516, representando a maioria esmagadora dos manuscritos." Embora o TR seja muito semelhante ao texto encontrado na maioria dos manuscritos (não idêntico), o que Erasmo utilizou não foi um texto majoritário, pois dependia basicamente de meia dúzia de manuscritos datados todos de depois do século XII. O manuscrito que Erasmo usou para o livro de Apocalipse, tomado de empréstimo ao erudito humanista Johann Reuchlin, não continha Apocalipse 22:16-21, que Erasmo retroverteu do latim para o grego!

Talvez o autor de E.E. acredite que a inspiração das Escrituras se estenda também à tradução que Erasmo fez dessa porção de Apocalipse. Afinal, ele afirma que "Deus preservou sua Palavra através do Textus Receptus."

Infelizmente para o autor de E.E. o próprio Erasmo revela uma predileção por manuscritos mais antigos, pois afirmou ter usado vetustissimis simul et emendatissimis ("os manuscritos mais antigos e mais corretos"). Conquanto isso não seja uma garantia de que "quanto mais velho melhor," revela que mesmo o editor do TR tinha a preocupação de buscar os textos mais fidedignos. O fato de ter introduzido variantes em sua primeira edição sugere que deve tê-los encontrado. Isso levanta a pergunta: "Qual das edições de Erasmo deveria ter sido tomada como base para o TR?"

A edição do TR lançada pela Sociedade Bíblica Trinitariana (s.d., creio que em 1985) admite que usou como base o texto de Robert Estienne (1550) conforme editado por Teodore Beza em 1598. Essa obra, no entanto, só veio a ser conhecida como Textus Receptus cerca de 35 anos depois, quando foi editada em Leiden, na Holanda pelos irmãos
Elzevir (segunda edição, 1633), na qual os próprios editores admitem ter feito correções, e a respeito do qual disseram: Textum ergo habes nunc ab omnibus receptum, in quo nihil immutatum aut corruptum damus ("Tens, portanto, o texto agora recebido por todos, no qual nada oferecemos de alterado ou corrupto.") Assim, curiosamente, o chamado Texto Recebido utilizado pelos tradutores da Versão Autorizada inglesa (1611) não foi exatamente o Textus Receptus, designação que só foi dada a uma edição que veio 13 anos depois da publicação da VA (ou KJV). Embora as diferenças entre as edições de 1550 (Estienne) e a de 1624 (Elzevir) sejam pouco numerosas, elas existem e a pergunta permanece: "Qual TR é o verdadeiro TR?"

Seria o texto da quinta edição de Erasmo? Esse texto foi editado por ele com diversas leituras da Poliglota Complutensiana (obra católico-romana), inclusive a famosa Comma Johanneum (1 João 5.7-8), e depois editado por Beza, que confessa, ele próprio, ter dúvidas quanto à autenticidade de João 8:1-12. Temos assim, uma situação confusa quanto ao que seria o texto que supostamente preservou os originais do NT. Será que Beza fazia parte desse sinistro complô para minar a confiança do povo de Deus nas Escrituras?

Será que o autor de E.E. se sente à vontade em companhia de tais parceiros? Ou será que a primeira edição de Erasmo é a que vale? Mas infelizmente ela não continha 1 João 5:7-8 e tinha um pedaço retrovertido do latim (Ap 22:16-21). Que fazer?

O autor de E.E. sugere que pastores, líderes e membros das igrejas devem se aprofundar mais no assunto de crítica textual. Como é que vai explicar essa grande confusão na origem do texto que supostamente contém o original do NT? E o que dizer do fato que o seu compilador (e vários de seus colaboradores) jamais ter evidenciado fé salvadora em Jesus Cristo, único mediador entre Deus e os homens? De ter repudiado a Reforma protestante? Teria Deus usado tal instrumento para a preservação de Sua Palavra?

Não seria mais lógico trabalhar com uma outra hipótese, menos radical? Ou seja, que o valor do TR está em preservar uma tradição antiquíssima e bem documentada que se acha expressa na maioria dos manuscritos (à qual Erasmo e seus sucessores imediatos jamais tiveram acesso) e que essa tradição precisa ser confrontada com outros tipos-textuais para que se prove a sua superioridade? Essa parece ser a abordagem do livro de Wilbur N. Pickering (The Identity of the New Testament Text) que ele menciona no final de seu documento, e cuja eventual tradução para o português será uma felicíssima adição à literatura existente sobre crítica textual.

Depois de levantados esses problemas na abordagem textual do autor de E.E., podemos analisar mais detalhadamente algumas de suas observações quanto às escolhas textuais de NVI. Vale a pena dizer, a princípio, que várias delas são pertinentes aos olhos de quem opta por um Texto Majoritário (ainda que não optando pelo TR). Na verdade, despertaram neste revisor o desejo de que se produzisse um Novo Testamento NVI com base no Tmaj. Tal sugestão já foi encaminhada à SBI na pessoa de seu secretário executivo. É de se esperar que o autor de E.E. e seu consultor técnico tenham interesse em tal proposta pois não estão "defendendo as traduções, mas sim os textos que foram usados para essas versões."


Problemas Textuais Específicos


O tratamento destas questões é complicado pela infeliz pressuposição do autor de E.E. de que as escolhas textuais da NVI tenham sido motivadas pelo desejo de destruir doutrinas fundamentais do cristianismo bíblico. É impossível argumentar contra pressuposições dessa natureza. Podemos apenas reafirmar nossa fidelidade a todas as doutrinas que o autor de E.E. nos acusa de atacar. É necessário, no entanto, tomar algumas passagens por ele citadas como representativas do procedimento em ambos os lados do debate.

Marcos 9:24. Embora apenas mencionada pelo autor de E.E. como um ataque à divindade de Jesus, esta passagem é um exemplo típico de seu raciocínio. Aqui a NVI omitiu a palavra grega (senhor), o que o autor de E.E. classificou como negação da divindade de Cristo.

Textualmente é um caso de diferença entre o TMaj e o TC. A NVI seguiu o TC, omitindo a palavra. Legitimamente, o máximo de que o autor de E.E. poderia acusar o CT é de uma escolha textual ruim. Além de pressupor nossa predisposição ariana, comete o erro exegético de impor ao pai do endemoninhado (pois foi ele que usou a expressão ) uma concepção de Cristo que apenas os discípulos tinham, e até então de modo incipiente, percebido. Sem impormos nossa própria leitura do NT à passagem, Marcos 9:24 apresenta um homem que trata Jesus como "mestre," no sentido de um rabi, e "senhor" em virtude da autoridade que sua posição como rabi lhe conferia. Omitir a palavra "senhor" (lembremo-nos de que no original não havia diferença entre "Senhor" e "senhor"), portanto, não é um ataque à doutrina da divindade de Cristo.

Atos 8:37. Esta passagem é alistada como um ataque à divindade de Cristo e à doutrina da salvação, com base na frase "creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus," supostamente proferida pelo etíope. Nesta passagem, o autor de E.E. opta pela leitura do TR contra a leitura to TMaj e do TC. A evidência em favor da frase (com cujo conteúdo claramente concordamos) é realmente muito frágil (o manuscrito E, 8 minúsculos, alguns manuscritos da Ítala e da Vulgata e versões; entre os chamados pais da Igreja, Irineu e Agostinho). Mesmo que se possa atribuir alguma antigüidade à leitura, ela fica claramente rejeitada (pelos cânones propostos por Burgon e defendidos por Pickering). Talvez por isso, Hodges e Farstad, editores do The Greek New Testament According to the Majority Text e defensores do TR (em oposição ao TC), optaram por omitir essa passagem e colocá-la apenas no aparato crítico. Talvez o autor de E.E. queira classificá-los também como hereges e destruidores da doutrina da divindade.

1 Timóteo 3:16. Esta passagem também é alistada entre os ataques à divindade de Jesus Cristo. Não tendo do que acusar o texto da NVI, que optou por seguir o TMaj (indo contra a NIV, atenuando a tradicional NR de outras versões modernas, e não usando a infeliz frase "os melhores manuscritos"), o autor de E.E. acusa a NVI de por em dúvida a própria escolha. Até quando confrontado com uma situação de escolha textual comum, enfatiza a NR. Quando o reverso acontece, todavia não reconhece que a NVI informa o leitor de alternativas textuais conservadoras.

1 João 4:3. Nesta passagem o autor de E.E. acusa a NVI de "aqui2 agrada[r] as falsas religiões, pois anula[m] que Cristo veio em carne." A presença do número 2 é explicada no final do documento como algo que não ocorre em toda a NVI. A impressão que fica ao leitor é de uma deliberada omissão da encarnação de Jesus. O que o autor de E.E. não menciona é que no versículo anterior, 1 João 4:2, a mesma frase está presente, e que qualquer leitor poderia verificar a realidade da encarnação lendo a linha superior do texto. (Talvez além de mal-intencionados os tradutores da NVI tenham sido incompetentes por não perceberem que também precisariam extirpar, na frase imediatamente anterior a frase omitida no verso 3.) O autor de E.E. tem todo o direito de questionar a escolha textual de que talvez tenha ocorrido parablepse (um erro de visão do copista) quer homoioteleuton, quer homoioarchon, no processo de cópia do TMaj, ou até sugerir que houve uma omissão deliberada nos manuscritos egípcios desta passagem, que deram origem ao TC, mas extrapolou ao deduzir (presumir) que diferença entre o TR e a NVI tenha sido motivada por preferências heréticas.

Colossenses 1:14. Este texto está alistado como um ataque à expiação por Cristo e só pelo seu sangue. Em Colossenses 1.14, o TMaj está um pouco dividido, com maior parte inclinada para a omissão das palavras ("por meio do seu sangue"). Uma vez mais, Hodges e Farstad optam por seguir o TC (Será que secretamente são do time dos liberais?). A acusação feita pelo autor de E.E. uma vez mais só teria sentido se a NVI e o TMaj tivessem retirado "pelo seu sangue" de Efésios 1.7, a passagem paralela (de onde provavelmente veio a adição no TR e traduções dele dependentes).

Atos 9:5-6. Outro dos supostos ataques à divindade de Cristo, esta opção textual do autor de E.E. é rejeitada pelo TMaj e pelo TC. A origem mais provável desta frase no TR é a passagem paralela em At 26:14. A omissão da palavra (uma legítima diferença textual entre o TC e o TMaj) na primeira frase do verso 6 é claramente mitigada pela sua presença nos versos 5 e 10. Uma vez mais, a ênfase dada pelo autor de E.E. me parece injustificada.

1 Pedro 2:2. Novamente o autor de E.E. usa a tática da culpa por associação para relegar a NVI ao rol dos hereges.
A inclusão da expressão grega ("para a salvação" ou "na salvação") é atribuída à crença de que "a salvação vem por um processo gradual de crescimento." Temos aqui um caso em que a tradição textual bizantina (TMaj) apresenta divisão. A leitura da NVI é apoiada por alguns dos principais manuscritos dessa tradição. Exceto pela sua escolha prévia do TR como representativo do original inspirado, o autor de E.E. deveria pelo menos considerar a possibilidade de que Pedro estivesse usando o mesmo tipo de proposta teológica que Paulo usou em Filipenses 2:13, ou seja, que há um crescimento na experiência e no desfrute da salvação. Que se questione a correção da tradução (que me parece pode ser melhorada nos termos sugeridos acima) e até a escolha textual (que me parece um caso aberto), mas não se impinja tal acusação de heresia a um grupo comprometido com a salvação pela graça por meio da fé e nada mais.

2 Tessalonicenses 2:8. Esta passagem está alistada como umas das "gravíssimas contradições." A NVI é acusada de contradizer Apocalipse 19:20 ao traduzir aqui o verbo grego ou por "matará". Ora, esse verbo indica "consumir " ou "destruir" em Lucas 9:54 (idéia de consumir com fogo) e em Gálatas 5:15 (sentido figurativo). Assim sendo, especialmente em vista de Lc 9:54, a tradução da NVI é aceitável e não configura contradição. Como explicar a tradução "desfará" da Almeida Fiel? O problema postulado
em Ap 19:20 é facilmente respondido pelo fato de o anticristo e o falso profeta serem lançados no lago de fogo já dotados do tipo de vida (=existência) que lhes permita sofrer, sem serem consumidos ou aniquilados (o que aconteceria se fossem lançados em corpos naturais num lago de fogo literal, que, presumo, seja a crença do autor de E.E.) a eterna pena de sua rebeldia contra Jesus Cristo.

1 João 5:7-8. Esta controvertida passagem foi alistada como um ataque da NVI contra a doutrina da Trindade. O autor de E.E. compara a NVI à bíblia dos Testemunhas de Jeová, utilizando mais uma vez o golpe baixo da culpa por associação. Será que gostaríamos de basear nossa crença da doutrina da Trindade numa passagem que não constava da primeira edição do TR (1516, que o autor de E.E. declara reconhecer como o seu TR, p. 1 do documento) porque Erasmo não a encontrara em nenhum manuscrito grego disponível? A adição da Comma Johanneum em edições posteriores se deveu a protestos iniciados pelos católicos romanos que produziram a Poliglota Complutensiana que, dominada pela Vulgata, incluíra o texto.

Essa derivação recente se pode ver na terceira edição do texto de Erasmo, onde a ausência dos artigos definidos () denuncia um original latino (o latim não possui artigo definido). Como a Complutensiana incorporava os artigos, edições subseqüentes do texto de Erasmo vieram a incluí-los.

O autor de E.E. menciona um livro escrito em defesa da Comma, mas não aduz quaisquer argumentos em seu favor. Não tenho acesso ao referido livro, e portanto não posso emitir opiniões sobre a validade de seus argumentos.

Ele afirma ainda que "o rodapé da NVI tem duas grandes inverdades." Quais seriam elas? O aparato crítico do Greek New Testament da United Bible Society (26ª edição de Nestle) indica que a Comma aparece em vgmss, o que indica que a afirmação da NR da NVI é correta. O aparato indica ainda que os manuscritos gregos que contém a Comma são os seguintes: 221, 2318 (61, 88, 429, 629, 636 918 também são alistados como contendo pequenas variações), mas nenhum desses é alistado ou datado nas várias listas de informação sobre manuscritos disponíveis. I. Howard Marshall, em seu comentário sobre as epístolas de João, embora apresentando uma lista ligeiramente diferente, afirma: "Nenhum desses é anterior ao século XIV. A passagem não é citada por qualquer dos pais gregos, e sua primeira aparição em grego é num relatório conciliar de 1215. Nenhuma outra das antigas versões do Novo Testamento a contém, exceto a versão latina ... [embora não apareçam] nas formas mais antigas da Ítala e na edição da Vulgata
feita pelo próprio Jerônimo ... a referência definida mais antiga é feita no Liber Apologeticus do escritor espanhol Prisciliano (ob. c. 385)."2 Até prova em contrário, a NR da NVI não falou inverdade quando disse que o texto da Comma "não é encontrado em nenhum manuscrito grego anterior ao século XII". O ônus da prova se encontra com o autor de E.E.

Vale lembrar, ainda uma vez, que o Greek New Testament According to the Majority Text também omite a Comma, alistando o TR como a única testemunha a seu favor.


Erros Textuais que Comprometeriam a Doutrina da Inerrância


Nessa categoria, da qual tratarei apenas dois exemplos dados em E.E., aparecem ao mesmo tempo uma ingenuidade exegética e um dogmatismo dignos de nota. Em Marcos 1:2, o texto adotado pela NVI exige muito maior firmeza quanto à inerrância do que o do TR. Conquanto minha preferência pessoal seja pelo TMaj (= TR), precisamos reconhecer que o mesmo expediente de alistar dois profetas sob uma única autoria acontece em Mateus 27:9, onde Jeremias e Zacarias aparecem sob a rubrica de Jeremias, e onde não existe problema textual. Será que Mateus está em contradição? Há maneira de defender a inerrância ainda que o texto original de Marcos dissesse "Isaías" em vez de "profetas"? Quem afirmar que não terá que engolir Mateus 27:9 como um "erro" das Escrituras. Assim, mais uma vez, pode até proceder a crítica à opção textual, mas a acusação doutrinária é infundada.

De igual modo, a questão do vinho e do vinagre em Mateus 27.34 reflete a expressão "procurar chifre em cabeça de cavalo." A diferença textual entre vinho e vinagre em grego é mínima () e poderia ser explicada tanto para um lado quanto para outro. O que dizer de Marcos 15:23, no TR, que usa "vinho"? Estará o TR em contradição com Salmo 69:21 [22 no Hebraico], onde surge a palavra "vinagre"? Quem sabe o fato do vinagre bíblico ser nada mais que vinho azedo (ver NVI em João 19:29) tenha motivado esse tipo de ambigüidade inerrante que o autor de E.E. apressadamente (ou por falta de maior destreza exegética) atribuiu à natureza herética da NVI?


Considerações Finais


Ao concluir esta resposta ao documento Expondo os Erros da NVI reitero minha tristeza pelo mesmo não ter sido apresentado diretamente à SBI como uma crítica aberta e direta à qualidade de nosso trabalho. Pelo fato do Novo Testamento estar em processo de revisão, ela teria sido útil. Infelizmente, agora é tarde para incluir entre as várias mudanças qualquer das propostas do autor de E.E.

Lamento ainda que ele tenha sido deliberadamente cego para com a tendência mais conservadora da NVI em relação à sua equivalente americana (NIV). Nosso tratamento de textos controversos como Marcos 16:9-20 e João 7:53-8:11 (retirando os colchetes e não utilizando terminologia tendenciosa) revela, no mínimo, nossa preferência pela inclusão de tais passagens no original.

A interação com o material serviu para demonstrar que o trabalho textual com a NVI pode e deve ser retomado. Há diversas observações textuais do autor de E.E. que são críticas válidas e necessárias e a SBI deverá lhes dar ouvidos, ainda que a aproximação tentada com o internauta que disseminou o texto não tenha produzido resultados animadores, senão a mesma atitude negativa que transpira nas seis páginas de que constou o documento aqui considerado.

Devo admitir que um dos resultados da interação com E.E. foi desejar uma edição da NVI com base no TM, que me parece uma opção textual mais sábia que o TR, a quem o autor de E.E. empresta valor de original preservado. Fica a sugestão apresentada à SBI como uma possível alternativa não apenas para indivíduos e grupos que desejem uma versão mais moderna com base em uma teoria textual mais conservadora, mas também para ampliar os recursos disponíveis para treinamento em crítica textual nas escolas brasileiras.


Atibaia, 24 de setembro de 1999


1 Será que esse intervalo de três séculos tem alguma significância? Línguas são como que entidades vivas, em constante mutação. Para efeito de compração, a primeira edição da Biblia completa em Português surgiu no final do século XVIII, ou seja, três séculos atrás.

2 I. Howard Marshall, The Epistles of John, NICNT
(Grand Rapids: Eerdmans, 1978), p. 236.

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Prof. Carlos Oswaldo Pinto
Reitor e Professor de Exegese Bíblica do
Seminário Bíblico Palavra da Vida, Atibaia - SP.


Andrezinho rupereta


A BÍBLIA EM TRADUÇÃO


Como os ouvimos falar em nossas próprias línguas as grandezas de Deus? (At 2.11)


De que serve a pureza da linguagem, se a inteligência do auditório não acompanha? Não temos absolutamente nenhuma razão de falar, se aqueles a quem nos dirigimos para nos fazer compreender não compreendem o que dizemos. (AGOSTINHO, A doutrina cristã, 1V,10.24, p.230)

A fé bíblica é essencialmente missionária (At 1.8). Diante disso, nada mais natural que se traduza a Bíblia para diferentes línguas. Em outras religiões, espera-se que os fiéis aprendam uma outra língua para ler o livro sagrado. No caso do islã, por exemplo, o Alcorão só pode ser lido em árabe. Com a fé bíblica é diferente: traduz-se desde o tempo de Esdras e Neemias, se não antes.

O processo de tradução


Traduzir é, a rigor, passar um texto para outra língua. Isto parece fácil e simples, mas não é. Existe até a história de uma senhora norte-americana que, em sua ingenuidade, ao se aposentar, entrou em contato com uma agência de tradução da Bíblia, pedindo que lhe enviassem o dicionário de uma língua indígena, pois, como agora dispunha de tempo, poderia ajudar no trabalho de tradução das Escrituras. Mal sabia ela que um texto é mais do que um conjunto de palavras isoladas e que traduzir é muito mais do que simplesmente substituir palavras!

O que se diz numa língua pode, a princípio, ser dito em qualquer outra língua. Não que seja um processo simples. Há alguns termos que são de difícil tradução, como, por exemplo, a palavra "saudade"35. Também existem textos que representam grande desafio para o tradutor, como, por exemplo, a obra de James Joyce.

Nem sempre o texto traduzido diz exatamente a mesma coisa que o original. Em muitos momentos o que se consegue é uma "semelhança interpretativa". O neto de Jesus, filho de Siraque, que, no segundo século a.C, traduziu a obra do avô para o grego, havia se dado conta disso. Ele confessou:


Fiz todo o possível para traduzi-lo bem. Mas, mesmo assim, se parecer que não fui feliz na tradução de algumas passagens, peço que me desculpem. É que as coisas escritas em hebraico não têm exatamente o mesmo sentido quando são traduzidas para outra língua. Isso não acontece somente com este livro que traduzi; a própria Lei, os livros dos Profetas e os outros livros são bem diferentes quando são lidos na língua em que foram escritos. (Introdução ao Eclesiástico, texto da NTLH)


Mas não existe texto intraduzível. Como explica Paulo Rónai, alguns textos têm traduzibilidade absoluta, ou seja, deixam impressão igual em todos os leitores (RÓNAI, 1987, p.56). Já a tradução de textos literários é uma aproximação, não havendo uma tradução perfeita e definitiva. O caso extremo é a poesia. Segundo Robert Frost, "poesia é aquilo que se perde na tradução" (RÓNAI, 1976, p.79). A Bíblia tem muito de literatura,especialmente os trechos poéticos. Isto talvez ajude a explicar o constante surgimento de novas traduções.


O panorama lingüístico atual


Existem em todo o mundo, hoje, aproximadamente 6.700 línguas vivas. Calcula-se que, no século XV, esse número chegava a quinze mil36. Essas 6.700 línguas chegam, na verdade, a 41 mil, caso se levar em conta os dialetos, que são formas locais de uma língua. A metade dessas línguas é falada na região da Ásia e do Pacífico, segundo divisão do mundo em quatro regiões, adotada pelas Sociedades Bíblicas Unidas. Aproximadamente 31% delas são faladas na África; 15% nas Américas; e só 4% na Europa. Na verdade, 96% da população mundial conseguem se comunicar fazendo uso de apenas quatro línguas diferentes.

A língua mais falada no mundo é, hoje, o mandarim (chinês), com uns 900 milhões de falantes. Em segundo lugar vem o espanhol, com quase 400 milhões. Em terceiro lugar, o inglês, seguido de bengali e hindi. O português aparece em sexto lugar, seguido de russo e japonês.

Na Europa, 730 milhões de pessoas falam 25 línguas vivas. Nas Américas, 830 milhões de pessoas falam mil línguas diferentes. No Brasil, apesar da impressão de sermos um país unilingue, são faladas umas 170 línguas indígenas. Somadas à situação das populações alofônicas (italianos, alemães, ucranianos, japoneses, árabes, etc), chega-se perto de 200 línguas faladas no Brasil37.

Traduções da Bíblia em perspectiva histórica


A primeira tradução bíblica literária, isto é, escrita, foi a grega, feita nos três últimos séculos antes de Cristo e conhecida como Septuaginta ("Versão dos Setenta").

Na era do NT, as traduções foram surgindo na medida em que a fé cristã ia avançando pelo mundo. Traduções latinas, por exemplo, começaram a aparecer por volta de 200 d.C. Assim, em 1804, quando iniciou o movimento das sociedades bíblicas, com a fundação da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, a Bíblia tinha sido traduzida para 68 línguas. Em 1940, a tradução da Bíblia alcançou 1.000 línguas38. No ano de 2003, a Bíblia, ou trechos dela, estava traduzida para 2.355 línguas diferentes.


A tradução de João Ferreira de Almeida


A Bíblia em português foi a décima terceira tradução numa língua moderna, depois da Reforma do século XVI.

O primeiro a traduzir a Bíblia dos originais (grego e hebraico) para a língua portuguesa foi João Ferreira de Almeida, pastor da Igreja reformada holandesa. A tradução foi feita no campo da missão, longe de Portugal e do Brasil, pois em terras católicas a leitura da Bíblia era proibida aos leigos.

João Ferreira A. de Almeida nasceu em Torre de Tavares, perto de Lisboa, em 1628, e deixou Portugal aos 14 anos de idade, indo para a Holanda e depois para Malaca, nas índias Orientais. Depois de um bom tempo, Almeida foi ordenado ao ministério da Igreja Reformada, sendo pastor na cidade de Batávia, na ilha de Java, atualmente a Indonésia. Almeida era um homem extremamente zeloso e um polemista. Seu lema era perficit qui perseverai ("termina quem persevera"), e contemporâneos dele falavam de "suas práticas cabeçudas" (HALLOCK & SWELLENGREBEL, 2000, p.115).

Aos 16 anos de idade, Almeida já havia traduzido o Novo Testamento do latim ao português. Sua tradução feita do original grego foi impressa em 1681, na Holanda, sob o título: "O Novo Testamento isto he o novo concerto de nosso fiel Senhor e Redemptor Iesu Christo traduzido na Lingua Portuguesa". Essa tradução, que depois foi integralizada com o acréscimo do Antigo Testamento, foi publicada várias vezes em Batávia, na Holanda, em Londres e no Rio de Janeiro.

O Novo Testamento Grego de que Almeida dispunha reproduzia o assim-chamado textus receptus ("texto recebido"), segunda edição de 1633, publicada pelos irmãos Elzevir. Em alguns pontos, o textus receptus é mais longo do que o texto grego que hoje é aceito como original em edições críticas como o Nestle-Aland e o The Greek New Testament. Isto explica o material entre colchetes, no NT (e apenas ali) da Almeida Revista e Atualizada: constava do texto grego que Almeida conhecia, mas hoje não mais faz parte do texto grego aceito como original.

Almeida morreu em 1691, com 63 anos, deixando a tradução do AT inconclusa: parou em Ezequiel, capítulo 48, versículo 21. Quem concluiu a tradução foi um colega holandês de Almeida, chamado Jacobus op den Akker. A Bíblia toda só foi publicada em 1753.

Essa tradução, com atualização ortográfica e pequenas modificações em relação ao primitivo Almeida, é conhecida como Almeida Revista e Corrigida (ARC).


Almeida Revista e Atualizada (ARA)


Em 1943, as Sociedades Bíblicas Unidas decidiram publicar uma revisão da tradução de Almeida. Esta tarefa foi continuada pela Sociedade Bíblica do Brasil, que foi fundada, no Rio de Janeiro, em 1948. Feita a partir da décima sexta edição do texto grego editado por Erwin Nestle, que foi sendo reimpresso sem alterações até à 25a edição, a tradução do NT da Almeida Revista e Atualizada foi publicada em 1952. A revisão do AT foi concluída em 1956. A Bíblia toda foi publicada em 1959.

Entre as modificações em relação ao Almeida antigo estão as seguintes: diante da constatação de que muitas pessoas somente terão contato com o texto sagrado através de uma leitura pública da Bíblia, não podendo ou não querendo ler o texto elas mesmas, deu-se atenção especial à maneira como o texto soa numa leitura em voz alta. Assim, foram eliminados cerca de dois mil tipos de cacófatos ou desagrados cacofônicos. Entre esses estão os "tatus" ("Volta tu também", Rt 1.15), as "alices" ("e todo o Israel ali se achou", Ed 8.25), etc. Foi também para evitar um desagrado cacofônico ("avós") que se passou a usar, aqui e ali, "a vós outros". Um exemplo dessa cacofonia aparece em Êx 24.14: "ficai aqui até que nos tornemos a vós"! Na ARA, ficou assim: "Esperai-nos aqui até que voltemos a vós outros"39.

Na ARA, o nome de Deus ("Javé"), no Antigo Testamento, aparece em versalete: SENHOR. Além disso, a primeira letra da palavra que inicia um parágrafo foi impressa em negrito. Também os textos poéticos passaram a ser impressos como poesia.

No cômputo geral, ARA difere do Almeida antigo (recensão de Londres) em 30% do texto. Ao todo, ARA emprega uns 8.400 vocábulos diferentes, excluindo nomes próprios.

Duas figuras de proa no trabalho de revisão e atualização de Almeida, no Brasil, foram o dr. Paul W. Schelp, eminente biblista e professor do Seminário Concórdia de Porto Alegre, e o reverendo Antonio de Campos Gonçalves, renomado vernaculista, à época radicado no Rio de Janeiro.


Comparação entre os três textos de Almeida


O texto de Nm 24.3-6, abaixo, permite que se perceba como o texto de Almeida mudou desde a primeira impressão (1748) até a edição revista e atualizada.

1a impressão de Almeida

Falla Billeam filho de Beor. e falla o varão de olhos abertos. Falla o que ouve os ditos de Deus, o que vé a visaõ do Todo-podcroso. o enlevado, e o descuberto de olhos. Quam boas as tuas tendas, o Jacob! Tuas moradas 6 Israel! Como ribeiros se esprayaõ. como hortas junto a os rios: como árvores de sândalo Jehovah os plantou, como cedros junto á agoas.

ARC

Falla, Balaão, filho de Beor, e falla o homem d'olhos abertos. Falla aquelle que ouviu os ditos de Deus, o que vê a visão do Todo-poderoso caido em extase d'olhos abertos. Que boas as tuas tendas, ó Jacob! As tuas moradas, ó Israel. Como ribeiros se estendam; como jardins ao pé dos rios: como árvores de sândalo o Senhor os plantou, como cedros junto as águas.

ARA

Proferiu a sua palavra e disse: Palavra de Balaão, filho de Beor, palavra do homem de olhos abertos; palavra daquele que ouve os ditos de Deus, o que tem a visão do Todo-Poderoso e prostra-se, porém de olhos abertos: Que boas são as tuas tendas, ó Jacó! Que boas são as tuas moradas, ó Israel Como vales que se estendem, como jardins à beira dos rios, como árvores de sândalo que o SENHOR plantou, como cedros junto às águas.

A Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH)


A mais recente tradução bíblica lançada pela Sociedade Bíblica do Brasil é o texto na linguagem de hoje. O projeto teve início em 1966, sendo que o NT saiu do prelo em 1973. A Bíblia completa foi publicada em 1988. Em 2000, foi lançada a Nova Tradução na Linguagem de Hoje, que é, a rigor, uma segunda edição desse texto, pois consiste em alguns pequenos retoques no AT (SENHOR em lugar de "Deus Eterno", aleluia em lugar de "louvem o Deus Eterno", etc.) e uma revisão mais aprofundada da tradução do NT.

Uma das diferenças mais palpáveis entre a NTLH e a Almeida diz respeito ao vocabulário. Enquanto Almeida espera que seu leitor conheça mais de oito mil vocábulos diferentes, na NTLH esse número cai para pouco mais de quatro mil. Isso fica dentro de uma faixa aceitável, pois a maioria dos falantes da língua usa, de forma ativa, apenas uns três mil vocábulos, mesmo que seja capaz de entender, de forma passiva, muito mais do que isso40.


Uma tradução em linguagem comum


A NTLH é uma tradução em linguagem comum. Embora linguagem comum seja, por vezes, entendida como sinônimo de linguagem simples, o conceito não é exatamente idêntico. Linguagem comum é a linguagem que a maioria da população de um lugar, de norte a sul, de leste a oeste, tem em comum. Isto significa que regionalismos não fazem parte de uma tradução dessas. O mesmo se aplica ao linguajar erudito, inacessível às pessoas de pouca escolaridade, e à linguagem vulgar, inaceitável para os mais eruditos. Na prática, a linguagem comum é aquele meio-termo que é acessível às pessoas menos instruídas e que é aceitável às pessoas mais eruditas.


Outras características da NTLH


A NTLH também se caracteriza por dividir o texto em unidades menores. Um exemplo disso é o que acontece em Ef 1.3-14, que é, possivelmente, um dos períodos mais longos do Novo Testamento: foi dividido em cinco parágrafos. Além disso, ela torna explícitos dados que estão implícitos. Exemplos disso são "Espírito de Deus", onde normalmente se lê "Espírito", e "Escritura Sagrada", onde, a rigor, o original traz apenas "Escritura"41. Igualmente tende a transformar construções passivas em ativas, como, por exemplo, em Mt 5.4: "serão consolados" foi transformado em "Deus as consolará".

Outra característica da NTLH é o processo de transmetaforização, ou seja, a tradução por outra metáfora, sempre que a metáfora bíblica for obscura para o leitor brasileiro. Assim, o "canto do eirado" passa a ser o "fundo do quintal", em Pv 21.9. Quando não há equivalente satisfatório para a metáfora, adota-se a desmateforização, isto é, a eliminação da metáfora por completo. Isto acontece, por exemplo, em Pv 5.15, onde "beber a água da própria cisterna" foi traduzido por "seja fiel à sua mulher". Um exame do contexto revela que é exatamente isto que se quer dizer42.

Princípios de tradução


Num nível conceituai, a grande diferença entre Almeida e NTLH tem a ver com princípios de tradução. Almeida opera com o que se chama de princípio de equivalência formal. Procura reproduzir não apenas o sentido do texto, mas, na medida do possível, também a forma do original bíblico. Um exemplo é a ordem das palavras. Em Gn 1.1, "criou Deus" reflete a ordem das palavras no hebraico. Em português se diz: "Deus criou". A Bíblia na linguagem de hoje, por sua vez, aplica o princípio de equivalência funcional, que em tempos passados era chamado de princípio de equivalência dinâmica. Aqui, se traduz o sentido, deixando de lado as estruturas originais. O alvo é produzir no leitor/ouvinte de hoje o mesmo impacto e efeito que o original produzia nos seus leitores/ouvintes.

Esse debate em torno de princípios de tradução aparece, no mais das vezes, sob a roupagem de discursos e argumentações em torno do que deve e não deve ser traduzido e sobre fidelidade em tradução. Quanto ao que deve ser traduzido, as opções parecem ser as seguintes: traduzir as palavras ou a forma; traduzir a mensagem ou o conteúdo; ou traduzir tanto a mensagem quanto as palavras.

Muitos são os que defendem uma tradução literal da Bíblia. Não é o mesmo que tradução literária. Na verdade, o que se entende por tradução literal é, caso for levado às últimas conseqüências, isto é, caso se fosse dar atenção aos seus mais ardorosos defensores, totalmente impossível. Ao se traduzir, mexe-se no texto. Quem não quiser que se mexa no texto, precisa ficar com o original. No caso da Bíblia, para ser 100% formal ou literal, seria preciso traduzir ao pé da letra todas as expressões idiomáticas, para citar apenas um exemplo. Nenhuma tradução da Bíblia faz isso. Em outras palavras, nenhuma tradução é totalmente formal ou literal. Algumas são mais, outras são menos. A King James Version, de 1611, por exemplo, é 95% formal. Isto significa que, em 5% dos casos, ela opta por uma tradução semântica ou tradução do sentido. Dá-se isto no caso das expressões idiomáticas. A New International Version (NIV, de 1978) é 44% semântica; no restante ela é formal. Já a Today's English Version, a primeira tradução do tipo "linguagem de hoje", é 83% semântica (In: Van Der Watt, 2002, p.257).


A questão da fidelidade


A questão da fidelidade pode ser proposta da seguinte forma: fiel a quem ou a quê? Numa das extremidades está a fidelidade ao autor; na outra, a fidelidade ao leitor. No meio, existe toda uma gama de variações. Em todo caso, traduções mais formais optam por fidelidade ao autor ou texto original. Traduções menos formais optam por fidelidade ao leitor ou à língua alvo. Traduções que aderem às palavras da língua fonte (o original) são chamadas de traduções identificadoras ou traduções "exóticas". Quando se obedece aos usos da língua alvo, diz-se que a tradução é naturalizadora ou domesticada.

Um exemplo de tradução que adere à língua fonte é a Vulgata de Jerônimo. A rigor, numa carta escrita a Pamáquio, em 395 d.C., Jerônimo se declarou todo a favor da tradução do sentido e contra uma tradução palavra por palavra. Abriu, no entanto, uma exceção: as Escrituras Sagradas, onde, segundo ele, até mesmo a ordem das palavras é um mistério (JEROME, pp.112-119). Agostinho achou que a Vulgata era por demais formal, ao menos na tradução de 1Ts 3.7: consolati sumus fratres in vobis ("consolados somos irmãos em vós"). Aqui, Jerônimo seguiu bem de perto a ordem das palavras no grego. Agostinho ousou criticar Jerônimo, sugerindo, ao mesmo tempo, uma tradução mais adequada:


É duvidoso se é preciso entender a palavra fratres, no vocativo, ou hos fratres, no acusativo. Por certo, nenhum desses sentidos é contrário à fé. (...) [C]onsultado o texto grego, vê-se que fratres é vocativo. E se o tradutor houvesse tido a idéia de colocar: (...) consolationem habuimus, fratres, in vobis tivemos o consolo em vós, irmãos"), ele teria sido menos escravo da tradução, mas haveria menos dúvida sobre o sentido (AGOSTINHO, A doutrina cristã, III, 4.8, p.157).


Na prática, o tradutor dificilmente consegue ser fiel a ambos: autor e leitor. Existe até um trocadilho italiano que fala disso: traduttori, traditori ("tradutores, traidores"). E um autor desconhecido disse certa vez, não deixando de revelar certa perspectiva machista, que "as traduções são como as mulheres: quando fiéis, não são bonitas; quando bonitas, não são fiéis".

Tradução é uma ciência e também uma arte. É um jogo de perdas e ganhos. Há traduções que nem parecem traduções. Outras, como disse Goethe, "excitam em nós uma curiosidade irresistível para conhecermos o original" (RÓNAI, 1976, p.5). E hoje existem teóricos que dizem que esse é, de fato, o objetivo da tradução. Defendem, em outras palavras, as traduções exóticas.


A necessidade de novas traduções e por que muitos as rejeitam.


Novas traduções e revisões de traduções existentes se fazem necessárias por quatro motivos (NIDA, 1960, p.200):


  1. Línguas são organismos vivos. Como tais, mudam, a começar pelo sentido de palavras. Um exemplo disso é "caridade", termo que aparece, na Revista e Corrigida, em ICo 13, e que foi mudado para "amor" na Almeida Revista e Atualizada.


  2. O texto original disponível hoje é melhor do que o texto que se tinha no passado. Isto vale tanto para o Antigo Testamento, com as descobertas dos pergaminhos do Mar Morto, quanto para o Novo Testamento, com as muitas descobertas de manuscritos no período que vai do ano de 1800 até aos nossos dias.


3) A exegese avança. Continuamos progredindo na compreensão de textos bíblicos, sendo que muitos ainda não compreendemos de todo. Para esse avanço, a arqueologia bíblica prestou grandes serviços. No caso do NT, não apenas foram descobertos muitos novos manuscritos, mas também, a partir de documentos escritos em grego coinê, foi possível uma melhor compreensão da natureza do grego do Novo Testamento. Também se conseguiu determinar o sentido de um maior número de termos gregos que aparecem no NT, tanto assim que a lista de palavras consideradas "próprias do NT" no começo do século XX diminuiu drasticamente ao longo do mesmo século, à medida que foram sendo descobertos papiros e outros artefatos da época do Novo Testamento43.


4) Mudam os conceitos de comunicação e também a teoria da tradução. Em outras palavras, a ciência e a arte da tradução também progridem. Nunca se estudou tanto a teoria da tradução como em nossos dias. A obra da tradução bíblica, em especial a teoria de Eugene A. Nida, foi uma grande propulsora desses estudos.


Quanto aos motivos que levam pessoas a rejeitar novas traduções da Bíblia, preferindo as versões mais antigas, podem ser relacionados os seguintes:


  1. As traduções existentes levaram as pessoas a pensar que uma tradução da Bíblia precisa ser, até certo ponto, incompreensível. Um ar de mistério parece que faz bem. Se a Bíblia tem uma linguagem muito direta, nem parece Bíblia! Um texto antiquado (a tradução) parece combinar melhor com o texto antigo (a Bíblia), sem falar que parece ter mais autoridade.


2) A familiaridade com o texto de determinada tradução - em muitos casos o texto foi memorizado - é fator de resistência a novas traduções.

3) A insegurança dos líderes e pastores das igrejas, que não sabem explicar ao certo por que o texto é diferente. Na verdade, as diferenças podem ser de três ordens: 1) diferenças por causa de um texto hebraico ou grego diferentes; 2) diferenças de interpretação (e toda tradução é fruto de um processo de interpretação); 3) diferenças de estilo, ou seja, a mensagem é expressa de formas diferentes.


Notas:


35 Segundo Moacyr Scliar, Saturno nos trópicos, pp. 148-51, a saudade é o mais luso dos sentimentos. A noção de que saudade só existe em português vem do rei Dom Duarte, do começo do século XV Isso não é totalmente exato, embora exemplos de outros idiomas não tenham "nem de longe, na economia dos respectivos idiomas-irmãos, a importância e a freqüência da saudade na língua portuguesa; nem tão pouco o quid, o não-sei-quê de misterioso que lhe adere" (Carolina Michaelis de Vasconcelos). Alguém definiu saudade como "desejo da coisa ou criatura amada, tornado dolorido pela ausência". Temos saudade daquilo que gostamos e gostamos de ter saudade, diz Scliar (p.150).


36 Diz-se que, hoje, morre uma língua a cada duas semanas. Uma língua morre quando morre o último falante da mesma. Responsáveis diretos por isso são guerras e genocídios; processos migratórios, e o imperialismo cultural. Em nosso caso específico, calcula-se que no início da colonização "a população brasílica está entre os dois extremos de 4,5 e 2,5 milhões de indígenas, que deviam, de fato, falar entre 2-1,5 mil línguas" (HOUAISS, 1983, p.63).


37 Para fins de comparação, registre-se que, nos Estados Unidos, são faladas 176 línguas; na Argentina, 20.


38 Sempre é bom lembrar que nem sempre se trata da Bíblia completa traduzida para essas línguas.


39 Para mais detalhes e exemplos, confira SCHOLZ, Vílson. A tradução da Bíblia por João Ferreira de Almeida e suas revisões. Igreja Luterana, v.64, junho de 2005, pp.7-29.

40 Uma língua dita "natural", isto é, indígena, geralmente tem menos de 3 mil vocábulos, ao passo que uma língua de cultura, como o português, pode chegar a 400 mil vocábulos (HOUAISS, 1983, p.75).

41 Aqui fica nítida a preocupação com a leitura em voz alta, que caracteriza também a ARA. Um "e" maiúsculo, em Espírito, não pode ser percebido pelo ouvinte, a não ser pelo contexto. "Espírito de Deus" elimina a ambigüidade. "Escritura" também é ambíguo, pois o primeiro sentido que vem à mente é "documento ou forma escrita de um ato jurídico". O uso técnico, na Bíblia, fica bem explícito em "Escritura Sagrada".


42 Para mais informações a respeito 43 Isto pode ser verificado através de uma comparação entre a lista de palavras consideradas "bíblicas" no léxico de Thayer, escrito no Final do século XIX, e a mesma lista no léxico de Bauer.dessas transformações gramaticais, confira o ponto 4 da introdução geral, na Bíblia de Estudo NTLH, publicada pela SBB.

Fonte: PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO BÍBLICA - INTRODUÇÃO À HERMENÊUTICA COM ÊNFASE EM GÊNEROS LITERÁRIOS / Vilson Sholz


OS QUATRO EVANGELHOS


 

I. A COLEÇÃO DOS EVANGELHOS


 

Dá-se geralmente o nome de "Quatro Evangelhos" aos primeiros livros do Novo Testamento. Antes do século IV, todavia, a coleção era designada apenas pelo nome de "O Evangelho", distinguindo-se as diferentes formas por "segundo Mateus", "segundo Marcos", etc.

Além do Evangelho escrito, recordado pelos quatro Evangelistas, havia ainda o Evangelho falado ou oral, a boa nova (euangelion) proclamada por Cristo e pelos discípulos. O emprego da palavra e seus derivados provém do verbo euangelizomai da Septuaginta nas seguintes passagens do Velho Testamento: Is 40.9; Is 52.7; Is 61.1 (veja-se como Cristo aplicou a Si próprio este último texto-Lc 4.18).

Irineu, bispo de Leão, na Gália, escrevendo cerca do ano 180, considera os quatro Evangelhos como um dos fatos mais incontestáveis do universo. "Assim como a terra consta de quatro continentes", -escreve o famoso bispo, -"assim como os ventos são quatro, assim também é natural que a Igreja Universal se baseie em quatro fortes colunas, que são os quatro Evangelhos".

Para assim falar tão categoricamente acerca do número dos Evangelhos, é porque no seu tempo e em todas as igrejas se admitiam esses quatro Evangelhos. Tal idéia, no entanto, levou tempo a concretizar-se, como é fácil verificar, ao traçar a história dos Evangelhos desde o tempo de Irineu até ao princípio do século II. O "Cânon Muratoriano" fala-nos do reconhecimento dos quatro Evangelhos pela Igreja Romana ainda no tempo de Irineu, o mesmo podendo dizer-se dos prólogos antimarcionitas aos Evangelhos escritos alguns anos antes. Taciano, cristão assírio, cerca do ano 170 formou dos quatro Evangelhos uma narrativa contínua ou "Harmonia dos Evangelhos", conhecida pelo nome de Diatessaron, e que durante muito tempo foi a versão siríaca favorita, embora não oficial, dos quatro Evangelhos que a Igreja da Assíria lia aos seus fiéis.

Taciano era discípulo do mártir Justino, em cujas obras se alude às "Memórias dos Apóstolos". Justino não fala de Mateus, Marcos ou Lucas, nem se refere a João como evangelista, mas é mais quecerto ter utilizado todos os Evangelhos, referindo-se a Marcos como Memórias de Pedro, e revelando manifesta influência em toda a obra dos quatro Evangelhos, se bem que por vezes se note um ou outro apontamento talvez inspirado nos Evangelhos pseudônimos de Pedro ou de Tomé.

Enquanto Justino assim escrevia em Roma, publicava-se na Ásia Menor uma obra com o título "Epístola dos Apóstolos", que vem confirmar os quatro Evangelhos. Em 1935 foram publicados pelo Museu Britânico fragmentos duma obra que se supõe ser um manual para instruir os crentes sobre a história dos Evangelhos. O que nos interessa sobremaneira, é que essa obra remonta à primeira metade do século II e deve ter sido composta por alguém que tinha ao lado os quatro Evangelhos, obra bem conhecida sua, que segue par e passo nas suas considerações.

Ainda da mesma época podemos citar outra obra de origem docética, o Evangelho de Pedro, escrito na Ásia na primeira década do século II, a demonstrar também que o autor possuía um conhecimento perfeito dos Evangelhos Sinópticos, e possivelmente também do Quarto Evangelho.Nas primeiras décadas do mesmo século, Papias, bispo de Hierápolis, na Frígia, escreveu as suas Exposições dos Oráculos do Senhor em que se refere expressamente ao Evangelho de Marcos e à compilação das palavras do Senhor feita por Mateus.

Provavelmente teve presente a obra de Lucas e, se dermos crédito ao Prólogo ao quarto Evangelho antimarcionita, Papias falou de João ditando o seu Evangelho "ainda em vida", para que as Igrejas o conhecessem.

Eusébio, a cujas citações devemos quase todo o conhecimento que temos desta última obra de Papias, nada afirma das referências feitas por este autor acerca do Evangelho de João, mas salienta que Papias utilizou "testemunhos" (textos autênticos?) da primeira epístola de João; e em presença da profunda relação entre aquela Epístola e o Quarto Evangelho, é muito provável que Papias tivesse também conhecimento do Evangelho. Há razão, portanto, para pensarmos que o ajudou a divulgar e que por isso o reconheceram as igrejas da Ásia.

Já que nos é lícito provar a existência e o reconhecimento dos quatro Evangelhos nos primeiros anos do século II, nos é lícito também admitir, que as referências de Inácio (cerca de 110) ou da Didache ao "Evangelho", implicam, não um só Evangelho, mas a coleção dos quatro Evangelhos.

Em suma, é de supor que os quatro Evangelhos comecem a aparecer juntos, logo a seguir à publicação do Evangelho segundo João. Há um autor que supõe terem sido os mesmos coligidos, em Éfeso, quinze ou vinte anos após o aparecimento do Evangelho de João, de maneira que esta obra tivesse a mesma divulgação que os outros Evangelhos. Quanto a Jo 21, julga-se que é um epílogo, que serve de conclusão ou remate aos quatro Evangelhos. Seja como for, podemos ter a certeza de que a coleção dos quatro Evangelhos data de cerca do ano 100, data em que se forma uma outra grande coleção do Cânon do Novo Testamento-as Epístolas de Paulo.

II. O EVANGELHO ORAL.

E que dizer da história destes quatro Evangelhos no século I? Precisamos antes de nada mais de remontar à época que se seguiu aos grandes acontecimentos do ano 30, em que Cristo morreu, ressuscitou, subiu ao Céu e enviou o Seu Espírito sobre os discípulos no dia de Pentecostes. Essa época passou a testemunhar um outro Evangelho. É certo que rigorosamente nada havia a acrescentar, pois Jesuse os discípulos já tinham anunciado "a boa nova do Reino de Deus". Mas o sentido exato dessa boa nova só poderia revelar-se após aqueles acontecimentos. Jesus e os apóstolos anunciaram que o Reino de Deus estava próximo, evidentemente referindo-se à própria Pessoa de Jesus, pois o reino de Deus não é mais que o conjunto dos acontecimentos relacionados com a vida, morte e ressurreição de Jesus. Pregar estes acontecimentos é, pois, pregar o Evangelho do Reino de Deus.

Ficará ainda por realizar-se a consumação do Reino, associada com o aparecimento de Jesus como filho do Homem "em poder e grande glória" para o juízo final. É esta consumação o último dos grandes acontecimentos iniciados com a vida terrena de Jesus.

O Deus da Bíblia é o Deus que Se manifesta em ações poderosas; o Deus dos antepassados, que Se manifestou a Israel nos grandes acontecimentos do Êxodo e do "Eisodo", através de ações ainda mais poderosas, manifestas e que agora Se revelou na Pessoa de Cristo para nos vir trazer a redenção. Esta era a força da original proclamação apostólica da mensagem cristã. E é para os registos dessa proclamação que nós agora precisamos voltar para saber o que era o Evangelho atrás dos quatro Evangelhos.

a) As epístolas paulinas e dos outros apóstolos

Paulo dirigiu as suas epístolas a um público já habituado a ouvir a pregação das verdades relativas à salvação e ao Salvador, se bem que nem sempre se faça qualquer alusão a essas verdades. Vejamos, no entanto, dois casos bem concretos em: 1Co 15.3 e segs. e 1Co 11.23 e segs. (Lembremos que esta epístola foi escritano ano 54). No primeiro caso Paulo lembra aos seus leitores a mensagem que lhes trouxera a salvação: "que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia segundo as Escrituras; que foi visto por Cefas e depois pelos doze; depois foi visto, uma vez, por mais de quinhentos irmãos, dos quais vive ainda a maior parte, mas alguns já dormem também; depois foi visto por Tiago e por fim por todos os apóstolos...".

É esta a mensagem que, embora resumida, Paulo diz ter recebido de outros (parelabon) antes de a entregar (paredoka) aos coríntios. Não é difícil acreditar que Paulo aproveitara bem aqueles quinze dias que passou junto de Pedro, quando foi a Jerusalém para o interrogar (historesai) cerca do ano 35 (cfr. Gl 1.18).

Por muito breve que seja aquela mensagem, não parece que se trate duma simples descrição da morte, da sepultura, da ressurreição e do aparecimento de determinada pessoa. Tais acontecimentos têm uma interpretação superior: a pessoa em questão era, nem mais nem menos, que o tão desejado Messias dos judeus-o "Cristo"; a morte sofreu-a Ele pelos pecados da humanidade; e essa morte juntamente com a ressurreição estavam de acordo com o plano de Deus revelado nas sagradas Escrituras do povo judaico.

Quanto ao segundo caso (#1Co 11.23 e segs.) é de notar a presença das mesmas duas palavras-parelabon "recebi por tradição" (do Senhor), e paredoka "entreguei". Nesta mensagem o Apóstolo lembra um episódio ocorrido na noite em que o "Senhor Jesus" foi traído: a instituição da cerimônia de partir o pão e beber o vinho em memória do mesmo Jesus, cerimônia essa que, a conselho de Paulo, devia ser repetida pelos cristãos com a "anunciarem a morte do Senhor, até que Ele venha". Esta última cláusula dá a entender que ainda não terminara tudo. Pelo menos esperava-se um grande acontecimento.

De outras referências acidentais da mesma epístola sabemos que a morte do Messias tomou a forma de crucifixão, um fato que serviria de pedra de escândalo para muitos ouvintes do Evangelho. De outras epístolas paulinas vemos que Jesus nasceu judeu e como judeu viveu sob a lei judaica; que não só era descendente de Abraão mas também membro da casa real de Davi; que, embora o gênero de morte fosse romano, a responsabilidade pertencia única e exclusivamente aos chefes judeus. De 1Tm 6.13 ficamos a saber que Jesus apareceu em presença de Pôncio Pilatos a dar "testemunho duma boa confissão", se bem que, de acordo com 2Tm 4.1, fosse designado por Deus juiz dos vivos e dos mortos. Enquanto Paulo escrevia, Cristo estava exaltado à mão direita de Deus (cfr. Sl 110.1) preparando-se para "julgar todos os que comparecerem diante do Seu tribunal" (2Co 5.10). É possível que este julgamento se relacione com o futuro aparecimento de Cristo, quando da ressurreição dos mortos e da imortalidade, que será concedida aos que ainda viverem, apenas seja tocada a última trombeta (1Co 15.52 e segs.; 1Ts 4.16).

Não pode duvidar-se de que esta tradição se faz notar na doutrina de Paulo acerca da consumação da redenção divina, quando Cristo Se manifestar. Ao escrever aos tessalonicenses, lembrando-lhes a hora da conversão, assim conclui: "Como dos ídolos vos convertestes a Deus, para servir o Deus vivo e verdadeiro, e esperar dos Céus a Seu Filho, a quem ressuscitou, isto é, Jesus, que nos livra da ira futura" (#1Ts 1.9 e segs.). Este elemento escatológico é freqüente na tradição oral do Novo Testamento, tal como nas mensagens dos profetas do Velho.

Paulo insiste (#1Co 15.11) no fato de pregar o mesmo Evangelho que os outros apóstolos. Não admira, pois, que encontremos na primeira epístola de Pedro (certamente autêntica) os mesmos fatos que se verificam na doutrina pregada pelos outros apóstolos: a morte e a ressurreição do Messias: a Sua exaltação à mão direita de Deus; por fim a glória numa futura revelação-tudo isto apresentado como cumprimento das profecias do Velho Testamento e como base indispensável para a salvação. O autor apresenta-se como testemunha dos sofrimentos do Messias, narra os acontecimentos, frisando sobretudo o modo como o padecente suportou todas as afrontas, em especial a morte. Não há dúvida que se trata de vestígios da pregação apostólica oral então freqüente, embora não possa falar-se de "influência paulina", como pretendem alguns autores. É apenas um eco claro e distinto da pregação que servia de base a Paulo e a todo o Novo Testamento Na Epístola aos Hebreus supõe-se, do mesmo modo, que os leitores estão a par desses acontecimentos fundamentais.

Distingamos, então, os seguintes elementos na primitiva pregação dos apóstolos, deduzidos das epístolas paulinas e dos outros discípulos:

1) Deus visitou e remiu o Seu Povo enviando-lhe o Messias, como cumprimento do Plano revelado no Velho Testamento.

2) Em conformidade com as profecias, esse Messias nasceu da descendência de Israel, da tribo de Judá, da casa real de Davi, e identificou-Se como Jesus de Nazaré.

3) Como anunciaram os profetas, morreu numa cruz pelos pecados dos homens.

4) Depois de sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, fato esse presenciado por muitas testemunhas.

5) Foi exaltado à mão direita de Deus.

6) Enviou o Seu Espírito a todos os crentes.

7) Terminada a Sua missão na terra, o Messias voltará mais tarde à terra para completar a obra da redenção, para julgar os vivos, e os mortos e inaugurar, na sua plenitude, o Reino visível de Deu na terra.

8) Com base nestes fatos, a todos os que se arrependeram e creram nesta boa nova foi-lhes oferecido o perdão dos pecados e a vida eterna; e todos os que creram, foram batizados em nome de Cristo formando uma nova comunidade-a Igreja Cristã.

b) A pregação da Primitiva Igreja Cristã

Se examinarmos os sermões de Pedro e de Paulo, resumidos nos primeiros capítulos dos Atos, fácil é chegar à conclusão de que não é fruto da invenção livre dum simples historiador, mas propositadas súmulas da doutrina então pregada na Primitiva Igreja Cristã. Os mais importantes destes sermões são os que Pedro proferiu em Jerusalém no dia de Pentecostes (At 2.14-36) e em Cesaréia em casa de Cornélio (At 10.34-43), e bem assim o de Paulo na sinagoga de Antioquia (At 13.16-43). Podemos ainda encontrar vestígios evidentes daquela pregação noutras passagens, como em At 3.13-26; At 4.10-12; At 5.30-32; At 8.32-35. Compare-se agora essa doutrina com a das epístolas. A mensagem é a mesma "boa nova", a anunciar o cumprimento das profecias do Velho Testamento. O personagem principal é o mesmo: Jesus de Nazaré, descendente de Davi, cuja vida pública datava do tempo do precursor João Batista e cuja missão era divinamente comprovada por inúmeros milagres, a que muitos dos pregadores assistiram. Esse Jesus fora entregue aos romanos pelos próprios judeus, que insistiram em matá-lo, apesar de Pilatos julgá-lo inocente. Foi preferido um assassino, a quem se deu liberdade, e a Jesus, em troca, a crucifixão-morte amaldiçoada já desde tempos remotos (cfr. #Dt 21.23). Retirado da Cruz e sepultado, Deus ressuscitara esse Jesus ao terceiro dia, e os apóstolos de novo foram testemunhas desse maravilhoso acontecimento, afirmando que, por ele, o Messias confirmava a Sua missão na terra. Seguiu-se a Sua ascensão aos céus e um lugar privilegiado à mão direita de Deus, que Lhe permitiu enviar o Espírito sobre os discípulos. Dali voltará um dia para concluir a Sua divina obra e julgar os vivos e os mortos. Entretanto, a chamada para aquele que ouve o Evangelho é para arrepender-se, crer, ser batizado e receber a remissão dos pecados e o dom do Espírito Santo.

É, pois, evidente que os Atos e as epístolas contêm a mesma doutrina. Nas suas linhas gerais a mensagem era sempre a mesma: uma doutrina invariável, que naqueles tempos se propagava aos quatro ventos e constituía a "boa nova" do Evangelho.


 

c) O esboço de Marcos


 

Um esboço semelhante sobre o kerygma pode ser discernido como o esqueleto em torno do qual a obra de Marcos foi edificada. Ver especialmente C. H. Dodd, em The Expository Times, XLIII (1931-32), págs. 396 e segs.. É digno de nota que Marcos começa onde o esboço do kerygma começa-com a atividade de João Batista -e termina com um relato sobre a paixão e ressurreição de Cristo, o que, tal como nos outros Evangelhos, recebe aquilo que talvez pareça um espaço desproporcionadamente grande, do ponto de vista puramente biográfico. Porém, essa é uma característica proeminente do kerygma em todas as formas em que podemos descobri-lo. Geralmente é reconhecido que o relato da paixão é contado com considerável detalhe como uma unidade, desde os mais primitivos dias da pregação apostólica.

Marcos, pois, consiste principalmente do kerygma -da mensagem sobre Jesus. A pregação Cristã primitiva dizia respeito mais com o que Cristo fez do que com o que Ele disse. De fato, Marcos nos fornece uma idéia maravilhosamente exata daquela pregação primitiva.

O esboço que forma seu esqueleto liga um breve sumário sobre o ministério do Batista (#Mc 1.1-13) à narrativa da paixão (Mc 14.1 e segs.) por elos que podem ser representados pelas seguintes secções: Mc 1.14 e segs., Mc 1.21 e segs., Mc 1.39; Mc 2.13; Mc 3.7-19; Mc 4.7-12 e segs., Mc 4.30 e segs., Mc 6.53-56; Mc 7.24,31; Mc 8.27-9.13; Mc 9.30-33; Mc 10.1,32-34; Mc 11.1-11,19.

Essas secções correspondem perfeitamente com o esboço reconstruído de outras passagens do Novo Testamento que conduzem à narrativa da paixão. Por ocasião da própria pregação, o esboço certamente era expandido por meio de material ilustrativo, e especialmente quando o Evangelho era proclamado entre gente que não estava anteriormente familiarizada com a história de Jesus. Por exemplo, aquela declaração que diz que Jesus foi "varão aprovado por Deus... com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele", ou que: "o qual andou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos os oprimidos do diabo" (At 2.22; At 10.38), certamente era amplificada, na prática, por instâncias de curas e de outras obras realizadas por Ele. As secções independentes ou pericopae que compõem o cerne do livro de Marcos, nos fornecem uma boa idéia sobre as ilustrações empregadas na pregação primitiva. Algumas dessas secções tomam a forma de "paradigmas" (segundo M. Dibelius as chama), exemplos citados na pregação primitiva, incidentes que levam a alguma notável afirmação de Jesus, por causa da qual os incidentes foram relembrados e relatados. Esses paradigmas mui geralmente envolvem um elemento de controvérsia, e a afirmação notável para a qual conduzem é justamente a resposta de Jesus às objeções levantadas contra algo que Ele ou Seus discípulos disseram ou fizeram. Em Marcos existem dois grupos notáveis de incidentes de controvérsias-um de cinco incidentes, em Mc 2.1-3.6, e outro de três incidentes, em Mc 12.13-34. Esses dois grupos provavelmente existiram como "tais em estágio oral, antes de serem incorporados no trabalho de Marcos; realmente, mediante a menção de uma combinação de fariseus e herodianos tanto em Mc 3.6 como em Mc 12.13", B. S. Easton concluiu que houve tempo em que formavam um só grupo, mas que foi dividido em dois grupos a fim de serem inseridos em dois contextos diferentes no esboço de Marcos.


 

III. OS EVANGELHOS ESCRITOS

Os quatro Evangelhos dividem-se naturalmente em dois grupos: os primeiros três formando um, e João outro. Os três primeiros são geralmente conhecidos pelo nome de Evangelhos Sinópticos, nome com que a partir do século XVII se designam, porque é tão idêntico o seu conteúdo, que os poderíamos colocar em três colunas paralelas, formando uma "sinopse", que muito facilita o nosso estudo.

Uma vez que Marcos parece representar melhor o kerygma primitivo, e Pedro nos Atos ser o principal pregador do mesmo, é provável que seja autêntica a tradição recebida e recordada por Papias, de que Marcos, agindo como intérprete de Pedro, foi encarregado posteriormente de escrever a sua pregação. Não é grande a diferença entre, a teoria de Alford, Westcott e outros, que atribuíram o conteúdo dos Sinópticos a uma dependência comum da primitiva pregação oral, e a opinião geral mais corrente segundo a qual Marcos é a principal fonte de Mateus e de Lucas, já que a Marcos é que foi confiada a missão de escrever a pregação oral. É de supor, que esta fosse feita primeiramente em aramaico, e só mais tarde em grego, em virtude da grande expansão que teve a atividade dos apóstolos. Repare-se nos freqüentes "aramaísmos" do texto grego dos Evangelhos.

Marcos, todavia, engloba a doutrina e os milagres de Jesus, enquanto os outros Evangelhos insistem mais na doutrina. É que as obras de Jesus formavam a base do kerygma, e a doutrina (didache) servia de fundamento à instrução que se ministrava aos que acreditavam na "boa nova". As epístolas do Novo Testamento insistem mais na doutrina do que na pregação, e a instrução moral que contêm está em perfeita harmonia com a doutrina de Jesus recordada nos Evangelhos.

Comparemos, por exemplo, a doutrina moral de Paulo em Rm 12.1-15.6 com a do Sermão da Montanha em Mt 5.1-7.29.

Além da pregação oral ou kerygma havia, pois, a doutrina oral ou didache, e destas são formados os nossos Evangelhos. Reparemos em Lucas a falar do seu Evangelho como sendo uma história "de tudo o que Jesus começou não só a fazer (kerygma), mas a ensinar" (didache) (#At 1.1). Distingue-se, pois, um corpo de doutrina comum a Mateus e a Lucas, que não se encontra em Marcos. Os textos que encerram essa doutrina (mais de duzentos) são vulgarmente designados pela letra "Q", e quando estudados em separado, especialmente pela ordem que aparecem em Lucas, apresentam uma notável medida de homogeneidade e continuidade, embora não ofereça garantias a suposição de que a fonte seja idêntica às reconstituições que alguns fizeram, isolando estes textos ou colocando-os por ordem.

Os textos "Q" foram provavelmente extraídos duma coleção de sentenças de Jesus, a princípio escritas em aramaico e depois circulando em várias versões gregas, formando aquilo que Papias provavelmente chamou "Os oráculos do Senhor" e atribuiu a Mateus. Parte desta coleção pode ter-se conservado em Mateus e parte em Lucas. Quanto a Marcos, também é possível que a conhecesse (cfr. Mc 4).

O kerygma de Marcos e a didache das fontes "Q" são o fundamento da tradição dos Sinópticos, embora haja outros, como a fonte valiosa de Lucas, que designamos pela letra "L", e que deve ter origem no círculo de Filipe em Cesaréia (At 21.8).

As narrações do nascimento de João Batista e de Jesus Cristo, representam o mais antigo fragmento ou documento evangélico do Novo Testamento, e em qualquer caso o que há de mais antigo em todo o volume. Podem muito bem ter origem na lembrança de alguns membros da Igreja de Jerusalém, que Lucas visitou no ano de 57 (At 21.15 e segs.). Uma teoria provável encara a possibilidade de Lucas ter ampliado a sua coleção de sentenças de Jesus (a sua fonte "Q") com ulteriores informações orais recebidas em Antioquia, Jerusalém e sobretudo em Cesaréia. Mais tarde ter-lhe-ia acrescentado novas informações obtidas através de Marcos, talvez quando se encontraram com Paulem Roma (Cl 4.10-14).

O discurso escatológico de Mc 13 (reproduzido em Mt 24 e Lc 21), talvez circulasse independentemente por escrito, se não no todo, pelo menos em parte, muito tempo antes de ser introduzido no Evangelho, possivelmente por volta do ano 40. Foi aliás o que serviu de fundo à doutrina escatológica de Paulo em Tessalônica no ano de 50 (cfr. 2Ts 2.1-11 e especialmente 2Ts 2.5). Provavelmente também o primeiro evangelista se inspirou nesta fonte (cfr. Mt 10.17-23). Note-se, todavia, que Mateus dispõe de muitos materiais que lhe são peculiares, incluindo a descrição do nascimento de Cristo, bem diferente da de Lucas; outras narrativas que aparentemente se conservaram nos círculos nazarenos ou judaico-cristãos; e, por fim, um corpo de doutrina "M", semelhante ao "Q" que mais faz sentir a influência judaica. Há quem suponha tratar-se dum corpo de doutrina isolado, mas é possível que se trate apenas duma parte da fonte "Q", incorporada em Mateus e não em Lucas. Outra fonte de que Mateus se serviu foi uma coleção de testemunhos messiânicos extraídos do Velho Testamento, testemunhos esses que Jesus cumpriu, nem sempre com a mesma forma grega dos textos na Septuaginta e representando uma tradução independente do hebraico.

Segundo o ponto de vista geralmente aceito sobre os métodos seguidos pelo primeiro e pelo terceiro evangelistas, Lucas arranjou suas fontes de material em blocos alternados, especialmente inserindo blocos de material de Marcos em seu próprio material não existente naquele (Q-L) o que, conforme muitos eruditos sustentam, já existia na forma de "Proto-Lucas", enquanto que Mateus fundiu as suas fontes de material, isto é, selecionou delas porções que moldou para formar novas unidades. A consideração sobre o arranjo de Mateus referente às declarações de Jesus sugere que ele as reorganizou de conformidade com o assunto em cinco grandes grupos de discursos, cada qual tratando, de alguma maneira, sobre algum aspecto do Reino dos Céus: Discurso I (Mt 5-7), a Lei do Reino; Discurso II (Mt 10), a Proclamação do Reino; Discurso III (Mt 13), O Desenvolvimento do Reino; Discurso IV (Mt 18), A Comunhão no Reino; Discurso V (Mt24-25), a Consumação do Reino. No grande Sermão da Montanha, por exemplo, (5-7), encontramos não apenas a substância do discurso paralelo que aparece em Lc 6.20-49, mas igualmente muitos outros dizeres de "Q" encontrados em outros contextos do livro de Lucas, juntamente com alguns dizeres peculiares a Mateus. A verdade, porém, é que nem sempre devemos concluir que duas passagens razoavelmente semelhantes em Mateus e Lucas devam derivar-se de uma fonte comum; muito daquilo que é atribuído a "Q" pode ter chegado ao conhecimento de Lucas derivado de uma de suas fontes especiais de material, especialmente quando não existe verdadeira identidade verbal com os paralelos encontrados em Mateus. Ainda assim, permanece forte a possibilidade que em Mateus o material foi reagrupado segundo a maneira já indicada; e que as secções narrativas (quase todas elas de Marcos), que precedem os vários grupos de discursos em Mateus, também tiveram seu material rearranjado para adaptar-se à ordem por tópicos. Não que ocasionalmente Lucas não se tenha desviado da ordem de suas fontes; por exemplo, ele coloca a visita de Nosso Senhor a Nazaré mais cedo do que é cronologicamente razoável, provavelmente tendo assim feito para que o programa de Sua missão messiânica, proclamado no Seu sermão na sinagoga, fosse posto logo no início do relato a respeito de Seu ministério. A seleção e o arranjo feitos por Lucas também indicam que ele tinha um muito maior interesse "biográfico" sobre Cristo que os outros evangelistas; e isso é o que já se poderia esperar do único grego entre os escritores do Novo Testamento.

Acrescente-se ainda, que alguns autores não vêem necessidade de se recorrer a outras fontes, considerando suficiente supor que Lucas foi a Mateus buscar os seus textos "Q". Não se trata, porém, duma teoria que explique devidamente a orgânica de Lucas através de toda a sua obra.

Mas quando pensamos ter descoberto as fontes orais ou documentais dos nossos Evangelhos, não julguemos ter na mão a chave para os interpretar e compreender devidamente. Este breve estudo não passa duma simples introdução a uma obra de envergadura extraordinária, como é a coleção dos nossos Evangelhos, tendo cada um características próprias e apresentando a Pessoa de Cristo com aspectos particularmente diferentes. Note-se, todavia, que os Sinópticos juntamente com o quarto Evangelho dão-nos uma visão completa dessa grande figura.

Apenas uma pequena parte das palavras e das ações de Jesus chegaram até nós por intermédio desses quatro autores, mas essa seleção foi realizada com tanta sabedoria, que O conhecemos mais perfeitamente, mesmo como Pessoa histórica, que qualquer outro personagem de quem se conhece a vida pormenorizadamente. Esta seleção forma não pequeno elemento daquela inspiração dos Evangelhos, que ajudou a cumprir a promessa de Nosso Senhor aos discípulos, segundo a qual o Espírito havia de trazer-lhes à memória o que lhes havia ensinado, com uma maior compreensão dos acontecimentos.

Durante os últimos trinta anos, não se tem deixado de estudar os Evangelhos à luz da chamada "Crítica das formas", que, além das fontes escritas, admite nos Evangelhos outros modelos ou "formas", segundo os quais teriam sido moldados os vários tipos de episódios e de sentenças doutrinárias da primitiva pregação oral. O valor desta aproximação foi exagerado, é certo; mas não deixou de prestar bons serviços, ao lembrar-nos a insuficiência de teorias documentais, que só explicam os fenômenos dos Evangelhos. Por outro lado, salienta a importância de considerar as formas da primitiva pregação e doutrina da Igreja nascente, revelando ao mesmo tempo que a figura de Jesus como Filho de Deus se destaca essencialmente, perpassando todos os Evangelhos. Mesmo nas mais primitivas formas da tradição evangélica, Jesus não deixa de fazer as Suas reivindicações e manter a Sua autoridade, ao perdoar e julgar. Não admira, por isso, que a famosa fonte "Q" de Mt 11.27 e Lc 10.22 seja designada pelo nome de "Quarto Evangelho resumido": "Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar". Este é o tema geral da doutrina expressa no quarto Evangelho. Indícios do mesmo, existem também nas epístolas paulinas e aos Hebreus, no hinário da primeira metade do século II intitulado "Odes de Salomão", nas cartas de Inácio, e mesmo no papiro de Ossirinco com o nome de Ditos de Jesus. Houve quem afirmasse, e não sem razão, que pelo menos dois textos cristológicos do Novo Testamento (fp 2.4 e segs. e parte do Prólogo de João) foram baseados em primitivos hinos cristãos. Em qualquer caso, o aspecto da Pessoa de Cristo, que apresentam, remonta ao tempo do próprio Cristo.

Note-se que o quarto Evangelho insiste neste aspecto da humanidade real de Jesus, de certo por causa das tendências docéticas daquele tempo. Todavia, apesar das diferenças que distinguem este Evangelho dos outros, todos se baseiam no mesmo primitivo kerygma, começando pelo batismo de João e incluindo os principais acontecimentos, a saber: a descida do Espírito Santo sobre Jesus, os Seus milagres, o Seu ministério na Galiléia e em Jerusalém, a Sua prisão, os tribunais do Sinédrio e de Pilatos, a Sua crucifixão, sepultura, ressurreição, ascensão, exaltação nos céus e finalmente a Sua última vinda para julgar os vivos e os mortos.

Uma tradição que remonta ao século II, supõe que o quarto Evangelho foi escrito em Éfeso e não em Alexandria, ou qualquer outra cidade como muitos afirmam. O que é de considerar é a relação existente em cada um dos Evangelhos com determinado núcleo de cristãos: Marcos com Roma, Mateus com Antioquia, Lucas possivelmente com qualquer cidade da Grécia e João com Éfeso. Sabe-se, que outros evangelhos circularam, embora temporariamente, na primitiva cristandade, mas estes quatro, já pelo valor intrínseco, já pela autoridade apostólica (direta ou indireta), transcenderam os limites do espaço e do tempo e em breve foram aceitos pela Igreja Universal. É que cada um deles adaptava-se primorosamente à missão da Igreja no mundo. E assim poderíamos aplicar aos quatro Evangelhos o que João afirma no seu: "Estes foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em Seu nome" (Jo 20.31).

F. F. BRUCE

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