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Author: mentesanta

OS QUATRO EVANGELHOS


 

I. A COLEÇÃO DOS EVANGELHOS


 

Dá-se geralmente o nome de "Quatro Evangelhos" aos primeiros livros do Novo Testamento. Antes do século IV, todavia, a coleção era designada apenas pelo nome de "O Evangelho", distinguindo-se as diferentes formas por "segundo Mateus", "segundo Marcos", etc.

Além do Evangelho escrito, recordado pelos quatro Evangelistas, havia ainda o Evangelho falado ou oral, a boa nova (euangelion) proclamada por Cristo e pelos discípulos. O emprego da palavra e seus derivados provém do verbo euangelizomai da Septuaginta nas seguintes passagens do Velho Testamento: Is 40.9; Is 52.7; Is 61.1 (veja-se como Cristo aplicou a Si próprio este último texto-Lc 4.18).

Irineu, bispo de Leão, na Gália, escrevendo cerca do ano 180, considera os quatro Evangelhos como um dos fatos mais incontestáveis do universo. "Assim como a terra consta de quatro continentes", -escreve o famoso bispo, -"assim como os ventos são quatro, assim também é natural que a Igreja Universal se baseie em quatro fortes colunas, que são os quatro Evangelhos".

Para assim falar tão categoricamente acerca do número dos Evangelhos, é porque no seu tempo e em todas as igrejas se admitiam esses quatro Evangelhos. Tal idéia, no entanto, levou tempo a concretizar-se, como é fácil verificar, ao traçar a história dos Evangelhos desde o tempo de Irineu até ao princípio do século II. O "Cânon Muratoriano" fala-nos do reconhecimento dos quatro Evangelhos pela Igreja Romana ainda no tempo de Irineu, o mesmo podendo dizer-se dos prólogos antimarcionitas aos Evangelhos escritos alguns anos antes. Taciano, cristão assírio, cerca do ano 170 formou dos quatro Evangelhos uma narrativa contínua ou "Harmonia dos Evangelhos", conhecida pelo nome de Diatessaron, e que durante muito tempo foi a versão siríaca favorita, embora não oficial, dos quatro Evangelhos que a Igreja da Assíria lia aos seus fiéis.

Taciano era discípulo do mártir Justino, em cujas obras se alude às "Memórias dos Apóstolos". Justino não fala de Mateus, Marcos ou Lucas, nem se refere a João como evangelista, mas é mais quecerto ter utilizado todos os Evangelhos, referindo-se a Marcos como Memórias de Pedro, e revelando manifesta influência em toda a obra dos quatro Evangelhos, se bem que por vezes se note um ou outro apontamento talvez inspirado nos Evangelhos pseudônimos de Pedro ou de Tomé.

Enquanto Justino assim escrevia em Roma, publicava-se na Ásia Menor uma obra com o título "Epístola dos Apóstolos", que vem confirmar os quatro Evangelhos. Em 1935 foram publicados pelo Museu Britânico fragmentos duma obra que se supõe ser um manual para instruir os crentes sobre a história dos Evangelhos. O que nos interessa sobremaneira, é que essa obra remonta à primeira metade do século II e deve ter sido composta por alguém que tinha ao lado os quatro Evangelhos, obra bem conhecida sua, que segue par e passo nas suas considerações.

Ainda da mesma época podemos citar outra obra de origem docética, o Evangelho de Pedro, escrito na Ásia na primeira década do século II, a demonstrar também que o autor possuía um conhecimento perfeito dos Evangelhos Sinópticos, e possivelmente também do Quarto Evangelho.Nas primeiras décadas do mesmo século, Papias, bispo de Hierápolis, na Frígia, escreveu as suas Exposições dos Oráculos do Senhor em que se refere expressamente ao Evangelho de Marcos e à compilação das palavras do Senhor feita por Mateus.

Provavelmente teve presente a obra de Lucas e, se dermos crédito ao Prólogo ao quarto Evangelho antimarcionita, Papias falou de João ditando o seu Evangelho "ainda em vida", para que as Igrejas o conhecessem.

Eusébio, a cujas citações devemos quase todo o conhecimento que temos desta última obra de Papias, nada afirma das referências feitas por este autor acerca do Evangelho de João, mas salienta que Papias utilizou "testemunhos" (textos autênticos?) da primeira epístola de João; e em presença da profunda relação entre aquela Epístola e o Quarto Evangelho, é muito provável que Papias tivesse também conhecimento do Evangelho. Há razão, portanto, para pensarmos que o ajudou a divulgar e que por isso o reconheceram as igrejas da Ásia.

Já que nos é lícito provar a existência e o reconhecimento dos quatro Evangelhos nos primeiros anos do século II, nos é lícito também admitir, que as referências de Inácio (cerca de 110) ou da Didache ao "Evangelho", implicam, não um só Evangelho, mas a coleção dos quatro Evangelhos.

Em suma, é de supor que os quatro Evangelhos comecem a aparecer juntos, logo a seguir à publicação do Evangelho segundo João. Há um autor que supõe terem sido os mesmos coligidos, em Éfeso, quinze ou vinte anos após o aparecimento do Evangelho de João, de maneira que esta obra tivesse a mesma divulgação que os outros Evangelhos. Quanto a Jo 21, julga-se que é um epílogo, que serve de conclusão ou remate aos quatro Evangelhos. Seja como for, podemos ter a certeza de que a coleção dos quatro Evangelhos data de cerca do ano 100, data em que se forma uma outra grande coleção do Cânon do Novo Testamento-as Epístolas de Paulo.

II. O EVANGELHO ORAL.

E que dizer da história destes quatro Evangelhos no século I? Precisamos antes de nada mais de remontar à época que se seguiu aos grandes acontecimentos do ano 30, em que Cristo morreu, ressuscitou, subiu ao Céu e enviou o Seu Espírito sobre os discípulos no dia de Pentecostes. Essa época passou a testemunhar um outro Evangelho. É certo que rigorosamente nada havia a acrescentar, pois Jesuse os discípulos já tinham anunciado "a boa nova do Reino de Deus". Mas o sentido exato dessa boa nova só poderia revelar-se após aqueles acontecimentos. Jesus e os apóstolos anunciaram que o Reino de Deus estava próximo, evidentemente referindo-se à própria Pessoa de Jesus, pois o reino de Deus não é mais que o conjunto dos acontecimentos relacionados com a vida, morte e ressurreição de Jesus. Pregar estes acontecimentos é, pois, pregar o Evangelho do Reino de Deus.

Ficará ainda por realizar-se a consumação do Reino, associada com o aparecimento de Jesus como filho do Homem "em poder e grande glória" para o juízo final. É esta consumação o último dos grandes acontecimentos iniciados com a vida terrena de Jesus.

O Deus da Bíblia é o Deus que Se manifesta em ações poderosas; o Deus dos antepassados, que Se manifestou a Israel nos grandes acontecimentos do Êxodo e do "Eisodo", através de ações ainda mais poderosas, manifestas e que agora Se revelou na Pessoa de Cristo para nos vir trazer a redenção. Esta era a força da original proclamação apostólica da mensagem cristã. E é para os registos dessa proclamação que nós agora precisamos voltar para saber o que era o Evangelho atrás dos quatro Evangelhos.

a) As epístolas paulinas e dos outros apóstolos

Paulo dirigiu as suas epístolas a um público já habituado a ouvir a pregação das verdades relativas à salvação e ao Salvador, se bem que nem sempre se faça qualquer alusão a essas verdades. Vejamos, no entanto, dois casos bem concretos em: 1Co 15.3 e segs. e 1Co 11.23 e segs. (Lembremos que esta epístola foi escritano ano 54). No primeiro caso Paulo lembra aos seus leitores a mensagem que lhes trouxera a salvação: "que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia segundo as Escrituras; que foi visto por Cefas e depois pelos doze; depois foi visto, uma vez, por mais de quinhentos irmãos, dos quais vive ainda a maior parte, mas alguns já dormem também; depois foi visto por Tiago e por fim por todos os apóstolos...".

É esta a mensagem que, embora resumida, Paulo diz ter recebido de outros (parelabon) antes de a entregar (paredoka) aos coríntios. Não é difícil acreditar que Paulo aproveitara bem aqueles quinze dias que passou junto de Pedro, quando foi a Jerusalém para o interrogar (historesai) cerca do ano 35 (cfr. Gl 1.18).

Por muito breve que seja aquela mensagem, não parece que se trate duma simples descrição da morte, da sepultura, da ressurreição e do aparecimento de determinada pessoa. Tais acontecimentos têm uma interpretação superior: a pessoa em questão era, nem mais nem menos, que o tão desejado Messias dos judeus-o "Cristo"; a morte sofreu-a Ele pelos pecados da humanidade; e essa morte juntamente com a ressurreição estavam de acordo com o plano de Deus revelado nas sagradas Escrituras do povo judaico.

Quanto ao segundo caso (#1Co 11.23 e segs.) é de notar a presença das mesmas duas palavras-parelabon "recebi por tradição" (do Senhor), e paredoka "entreguei". Nesta mensagem o Apóstolo lembra um episódio ocorrido na noite em que o "Senhor Jesus" foi traído: a instituição da cerimônia de partir o pão e beber o vinho em memória do mesmo Jesus, cerimônia essa que, a conselho de Paulo, devia ser repetida pelos cristãos com a "anunciarem a morte do Senhor, até que Ele venha". Esta última cláusula dá a entender que ainda não terminara tudo. Pelo menos esperava-se um grande acontecimento.

De outras referências acidentais da mesma epístola sabemos que a morte do Messias tomou a forma de crucifixão, um fato que serviria de pedra de escândalo para muitos ouvintes do Evangelho. De outras epístolas paulinas vemos que Jesus nasceu judeu e como judeu viveu sob a lei judaica; que não só era descendente de Abraão mas também membro da casa real de Davi; que, embora o gênero de morte fosse romano, a responsabilidade pertencia única e exclusivamente aos chefes judeus. De 1Tm 6.13 ficamos a saber que Jesus apareceu em presença de Pôncio Pilatos a dar "testemunho duma boa confissão", se bem que, de acordo com 2Tm 4.1, fosse designado por Deus juiz dos vivos e dos mortos. Enquanto Paulo escrevia, Cristo estava exaltado à mão direita de Deus (cfr. Sl 110.1) preparando-se para "julgar todos os que comparecerem diante do Seu tribunal" (2Co 5.10). É possível que este julgamento se relacione com o futuro aparecimento de Cristo, quando da ressurreição dos mortos e da imortalidade, que será concedida aos que ainda viverem, apenas seja tocada a última trombeta (1Co 15.52 e segs.; 1Ts 4.16).

Não pode duvidar-se de que esta tradição se faz notar na doutrina de Paulo acerca da consumação da redenção divina, quando Cristo Se manifestar. Ao escrever aos tessalonicenses, lembrando-lhes a hora da conversão, assim conclui: "Como dos ídolos vos convertestes a Deus, para servir o Deus vivo e verdadeiro, e esperar dos Céus a Seu Filho, a quem ressuscitou, isto é, Jesus, que nos livra da ira futura" (#1Ts 1.9 e segs.). Este elemento escatológico é freqüente na tradição oral do Novo Testamento, tal como nas mensagens dos profetas do Velho.

Paulo insiste (#1Co 15.11) no fato de pregar o mesmo Evangelho que os outros apóstolos. Não admira, pois, que encontremos na primeira epístola de Pedro (certamente autêntica) os mesmos fatos que se verificam na doutrina pregada pelos outros apóstolos: a morte e a ressurreição do Messias: a Sua exaltação à mão direita de Deus; por fim a glória numa futura revelação-tudo isto apresentado como cumprimento das profecias do Velho Testamento e como base indispensável para a salvação. O autor apresenta-se como testemunha dos sofrimentos do Messias, narra os acontecimentos, frisando sobretudo o modo como o padecente suportou todas as afrontas, em especial a morte. Não há dúvida que se trata de vestígios da pregação apostólica oral então freqüente, embora não possa falar-se de "influência paulina", como pretendem alguns autores. É apenas um eco claro e distinto da pregação que servia de base a Paulo e a todo o Novo Testamento Na Epístola aos Hebreus supõe-se, do mesmo modo, que os leitores estão a par desses acontecimentos fundamentais.

Distingamos, então, os seguintes elementos na primitiva pregação dos apóstolos, deduzidos das epístolas paulinas e dos outros discípulos:

1) Deus visitou e remiu o Seu Povo enviando-lhe o Messias, como cumprimento do Plano revelado no Velho Testamento.

2) Em conformidade com as profecias, esse Messias nasceu da descendência de Israel, da tribo de Judá, da casa real de Davi, e identificou-Se como Jesus de Nazaré.

3) Como anunciaram os profetas, morreu numa cruz pelos pecados dos homens.

4) Depois de sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, fato esse presenciado por muitas testemunhas.

5) Foi exaltado à mão direita de Deus.

6) Enviou o Seu Espírito a todos os crentes.

7) Terminada a Sua missão na terra, o Messias voltará mais tarde à terra para completar a obra da redenção, para julgar os vivos, e os mortos e inaugurar, na sua plenitude, o Reino visível de Deu na terra.

8) Com base nestes fatos, a todos os que se arrependeram e creram nesta boa nova foi-lhes oferecido o perdão dos pecados e a vida eterna; e todos os que creram, foram batizados em nome de Cristo formando uma nova comunidade-a Igreja Cristã.

b) A pregação da Primitiva Igreja Cristã

Se examinarmos os sermões de Pedro e de Paulo, resumidos nos primeiros capítulos dos Atos, fácil é chegar à conclusão de que não é fruto da invenção livre dum simples historiador, mas propositadas súmulas da doutrina então pregada na Primitiva Igreja Cristã. Os mais importantes destes sermões são os que Pedro proferiu em Jerusalém no dia de Pentecostes (At 2.14-36) e em Cesaréia em casa de Cornélio (At 10.34-43), e bem assim o de Paulo na sinagoga de Antioquia (At 13.16-43). Podemos ainda encontrar vestígios evidentes daquela pregação noutras passagens, como em At 3.13-26; At 4.10-12; At 5.30-32; At 8.32-35. Compare-se agora essa doutrina com a das epístolas. A mensagem é a mesma "boa nova", a anunciar o cumprimento das profecias do Velho Testamento. O personagem principal é o mesmo: Jesus de Nazaré, descendente de Davi, cuja vida pública datava do tempo do precursor João Batista e cuja missão era divinamente comprovada por inúmeros milagres, a que muitos dos pregadores assistiram. Esse Jesus fora entregue aos romanos pelos próprios judeus, que insistiram em matá-lo, apesar de Pilatos julgá-lo inocente. Foi preferido um assassino, a quem se deu liberdade, e a Jesus, em troca, a crucifixão-morte amaldiçoada já desde tempos remotos (cfr. #Dt 21.23). Retirado da Cruz e sepultado, Deus ressuscitara esse Jesus ao terceiro dia, e os apóstolos de novo foram testemunhas desse maravilhoso acontecimento, afirmando que, por ele, o Messias confirmava a Sua missão na terra. Seguiu-se a Sua ascensão aos céus e um lugar privilegiado à mão direita de Deus, que Lhe permitiu enviar o Espírito sobre os discípulos. Dali voltará um dia para concluir a Sua divina obra e julgar os vivos e os mortos. Entretanto, a chamada para aquele que ouve o Evangelho é para arrepender-se, crer, ser batizado e receber a remissão dos pecados e o dom do Espírito Santo.

É, pois, evidente que os Atos e as epístolas contêm a mesma doutrina. Nas suas linhas gerais a mensagem era sempre a mesma: uma doutrina invariável, que naqueles tempos se propagava aos quatro ventos e constituía a "boa nova" do Evangelho.


 

c) O esboço de Marcos


 

Um esboço semelhante sobre o kerygma pode ser discernido como o esqueleto em torno do qual a obra de Marcos foi edificada. Ver especialmente C. H. Dodd, em The Expository Times, XLIII (1931-32), págs. 396 e segs.. É digno de nota que Marcos começa onde o esboço do kerygma começa-com a atividade de João Batista -e termina com um relato sobre a paixão e ressurreição de Cristo, o que, tal como nos outros Evangelhos, recebe aquilo que talvez pareça um espaço desproporcionadamente grande, do ponto de vista puramente biográfico. Porém, essa é uma característica proeminente do kerygma em todas as formas em que podemos descobri-lo. Geralmente é reconhecido que o relato da paixão é contado com considerável detalhe como uma unidade, desde os mais primitivos dias da pregação apostólica.

Marcos, pois, consiste principalmente do kerygma -da mensagem sobre Jesus. A pregação Cristã primitiva dizia respeito mais com o que Cristo fez do que com o que Ele disse. De fato, Marcos nos fornece uma idéia maravilhosamente exata daquela pregação primitiva.

O esboço que forma seu esqueleto liga um breve sumário sobre o ministério do Batista (#Mc 1.1-13) à narrativa da paixão (Mc 14.1 e segs.) por elos que podem ser representados pelas seguintes secções: Mc 1.14 e segs., Mc 1.21 e segs., Mc 1.39; Mc 2.13; Mc 3.7-19; Mc 4.7-12 e segs., Mc 4.30 e segs., Mc 6.53-56; Mc 7.24,31; Mc 8.27-9.13; Mc 9.30-33; Mc 10.1,32-34; Mc 11.1-11,19.

Essas secções correspondem perfeitamente com o esboço reconstruído de outras passagens do Novo Testamento que conduzem à narrativa da paixão. Por ocasião da própria pregação, o esboço certamente era expandido por meio de material ilustrativo, e especialmente quando o Evangelho era proclamado entre gente que não estava anteriormente familiarizada com a história de Jesus. Por exemplo, aquela declaração que diz que Jesus foi "varão aprovado por Deus... com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele", ou que: "o qual andou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos os oprimidos do diabo" (At 2.22; At 10.38), certamente era amplificada, na prática, por instâncias de curas e de outras obras realizadas por Ele. As secções independentes ou pericopae que compõem o cerne do livro de Marcos, nos fornecem uma boa idéia sobre as ilustrações empregadas na pregação primitiva. Algumas dessas secções tomam a forma de "paradigmas" (segundo M. Dibelius as chama), exemplos citados na pregação primitiva, incidentes que levam a alguma notável afirmação de Jesus, por causa da qual os incidentes foram relembrados e relatados. Esses paradigmas mui geralmente envolvem um elemento de controvérsia, e a afirmação notável para a qual conduzem é justamente a resposta de Jesus às objeções levantadas contra algo que Ele ou Seus discípulos disseram ou fizeram. Em Marcos existem dois grupos notáveis de incidentes de controvérsias-um de cinco incidentes, em Mc 2.1-3.6, e outro de três incidentes, em Mc 12.13-34. Esses dois grupos provavelmente existiram como "tais em estágio oral, antes de serem incorporados no trabalho de Marcos; realmente, mediante a menção de uma combinação de fariseus e herodianos tanto em Mc 3.6 como em Mc 12.13", B. S. Easton concluiu que houve tempo em que formavam um só grupo, mas que foi dividido em dois grupos a fim de serem inseridos em dois contextos diferentes no esboço de Marcos.


 

III. OS EVANGELHOS ESCRITOS

Os quatro Evangelhos dividem-se naturalmente em dois grupos: os primeiros três formando um, e João outro. Os três primeiros são geralmente conhecidos pelo nome de Evangelhos Sinópticos, nome com que a partir do século XVII se designam, porque é tão idêntico o seu conteúdo, que os poderíamos colocar em três colunas paralelas, formando uma "sinopse", que muito facilita o nosso estudo.

Uma vez que Marcos parece representar melhor o kerygma primitivo, e Pedro nos Atos ser o principal pregador do mesmo, é provável que seja autêntica a tradição recebida e recordada por Papias, de que Marcos, agindo como intérprete de Pedro, foi encarregado posteriormente de escrever a sua pregação. Não é grande a diferença entre, a teoria de Alford, Westcott e outros, que atribuíram o conteúdo dos Sinópticos a uma dependência comum da primitiva pregação oral, e a opinião geral mais corrente segundo a qual Marcos é a principal fonte de Mateus e de Lucas, já que a Marcos é que foi confiada a missão de escrever a pregação oral. É de supor, que esta fosse feita primeiramente em aramaico, e só mais tarde em grego, em virtude da grande expansão que teve a atividade dos apóstolos. Repare-se nos freqüentes "aramaísmos" do texto grego dos Evangelhos.

Marcos, todavia, engloba a doutrina e os milagres de Jesus, enquanto os outros Evangelhos insistem mais na doutrina. É que as obras de Jesus formavam a base do kerygma, e a doutrina (didache) servia de fundamento à instrução que se ministrava aos que acreditavam na "boa nova". As epístolas do Novo Testamento insistem mais na doutrina do que na pregação, e a instrução moral que contêm está em perfeita harmonia com a doutrina de Jesus recordada nos Evangelhos.

Comparemos, por exemplo, a doutrina moral de Paulo em Rm 12.1-15.6 com a do Sermão da Montanha em Mt 5.1-7.29.

Além da pregação oral ou kerygma havia, pois, a doutrina oral ou didache, e destas são formados os nossos Evangelhos. Reparemos em Lucas a falar do seu Evangelho como sendo uma história "de tudo o que Jesus começou não só a fazer (kerygma), mas a ensinar" (didache) (#At 1.1). Distingue-se, pois, um corpo de doutrina comum a Mateus e a Lucas, que não se encontra em Marcos. Os textos que encerram essa doutrina (mais de duzentos) são vulgarmente designados pela letra "Q", e quando estudados em separado, especialmente pela ordem que aparecem em Lucas, apresentam uma notável medida de homogeneidade e continuidade, embora não ofereça garantias a suposição de que a fonte seja idêntica às reconstituições que alguns fizeram, isolando estes textos ou colocando-os por ordem.

Os textos "Q" foram provavelmente extraídos duma coleção de sentenças de Jesus, a princípio escritas em aramaico e depois circulando em várias versões gregas, formando aquilo que Papias provavelmente chamou "Os oráculos do Senhor" e atribuiu a Mateus. Parte desta coleção pode ter-se conservado em Mateus e parte em Lucas. Quanto a Marcos, também é possível que a conhecesse (cfr. Mc 4).

O kerygma de Marcos e a didache das fontes "Q" são o fundamento da tradição dos Sinópticos, embora haja outros, como a fonte valiosa de Lucas, que designamos pela letra "L", e que deve ter origem no círculo de Filipe em Cesaréia (At 21.8).

As narrações do nascimento de João Batista e de Jesus Cristo, representam o mais antigo fragmento ou documento evangélico do Novo Testamento, e em qualquer caso o que há de mais antigo em todo o volume. Podem muito bem ter origem na lembrança de alguns membros da Igreja de Jerusalém, que Lucas visitou no ano de 57 (At 21.15 e segs.). Uma teoria provável encara a possibilidade de Lucas ter ampliado a sua coleção de sentenças de Jesus (a sua fonte "Q") com ulteriores informações orais recebidas em Antioquia, Jerusalém e sobretudo em Cesaréia. Mais tarde ter-lhe-ia acrescentado novas informações obtidas através de Marcos, talvez quando se encontraram com Paulem Roma (Cl 4.10-14).

O discurso escatológico de Mc 13 (reproduzido em Mt 24 e Lc 21), talvez circulasse independentemente por escrito, se não no todo, pelo menos em parte, muito tempo antes de ser introduzido no Evangelho, possivelmente por volta do ano 40. Foi aliás o que serviu de fundo à doutrina escatológica de Paulo em Tessalônica no ano de 50 (cfr. 2Ts 2.1-11 e especialmente 2Ts 2.5). Provavelmente também o primeiro evangelista se inspirou nesta fonte (cfr. Mt 10.17-23). Note-se, todavia, que Mateus dispõe de muitos materiais que lhe são peculiares, incluindo a descrição do nascimento de Cristo, bem diferente da de Lucas; outras narrativas que aparentemente se conservaram nos círculos nazarenos ou judaico-cristãos; e, por fim, um corpo de doutrina "M", semelhante ao "Q" que mais faz sentir a influência judaica. Há quem suponha tratar-se dum corpo de doutrina isolado, mas é possível que se trate apenas duma parte da fonte "Q", incorporada em Mateus e não em Lucas. Outra fonte de que Mateus se serviu foi uma coleção de testemunhos messiânicos extraídos do Velho Testamento, testemunhos esses que Jesus cumpriu, nem sempre com a mesma forma grega dos textos na Septuaginta e representando uma tradução independente do hebraico.

Segundo o ponto de vista geralmente aceito sobre os métodos seguidos pelo primeiro e pelo terceiro evangelistas, Lucas arranjou suas fontes de material em blocos alternados, especialmente inserindo blocos de material de Marcos em seu próprio material não existente naquele (Q-L) o que, conforme muitos eruditos sustentam, já existia na forma de "Proto-Lucas", enquanto que Mateus fundiu as suas fontes de material, isto é, selecionou delas porções que moldou para formar novas unidades. A consideração sobre o arranjo de Mateus referente às declarações de Jesus sugere que ele as reorganizou de conformidade com o assunto em cinco grandes grupos de discursos, cada qual tratando, de alguma maneira, sobre algum aspecto do Reino dos Céus: Discurso I (Mt 5-7), a Lei do Reino; Discurso II (Mt 10), a Proclamação do Reino; Discurso III (Mt 13), O Desenvolvimento do Reino; Discurso IV (Mt 18), A Comunhão no Reino; Discurso V (Mt24-25), a Consumação do Reino. No grande Sermão da Montanha, por exemplo, (5-7), encontramos não apenas a substância do discurso paralelo que aparece em Lc 6.20-49, mas igualmente muitos outros dizeres de "Q" encontrados em outros contextos do livro de Lucas, juntamente com alguns dizeres peculiares a Mateus. A verdade, porém, é que nem sempre devemos concluir que duas passagens razoavelmente semelhantes em Mateus e Lucas devam derivar-se de uma fonte comum; muito daquilo que é atribuído a "Q" pode ter chegado ao conhecimento de Lucas derivado de uma de suas fontes especiais de material, especialmente quando não existe verdadeira identidade verbal com os paralelos encontrados em Mateus. Ainda assim, permanece forte a possibilidade que em Mateus o material foi reagrupado segundo a maneira já indicada; e que as secções narrativas (quase todas elas de Marcos), que precedem os vários grupos de discursos em Mateus, também tiveram seu material rearranjado para adaptar-se à ordem por tópicos. Não que ocasionalmente Lucas não se tenha desviado da ordem de suas fontes; por exemplo, ele coloca a visita de Nosso Senhor a Nazaré mais cedo do que é cronologicamente razoável, provavelmente tendo assim feito para que o programa de Sua missão messiânica, proclamado no Seu sermão na sinagoga, fosse posto logo no início do relato a respeito de Seu ministério. A seleção e o arranjo feitos por Lucas também indicam que ele tinha um muito maior interesse "biográfico" sobre Cristo que os outros evangelistas; e isso é o que já se poderia esperar do único grego entre os escritores do Novo Testamento.

Acrescente-se ainda, que alguns autores não vêem necessidade de se recorrer a outras fontes, considerando suficiente supor que Lucas foi a Mateus buscar os seus textos "Q". Não se trata, porém, duma teoria que explique devidamente a orgânica de Lucas através de toda a sua obra.

Mas quando pensamos ter descoberto as fontes orais ou documentais dos nossos Evangelhos, não julguemos ter na mão a chave para os interpretar e compreender devidamente. Este breve estudo não passa duma simples introdução a uma obra de envergadura extraordinária, como é a coleção dos nossos Evangelhos, tendo cada um características próprias e apresentando a Pessoa de Cristo com aspectos particularmente diferentes. Note-se, todavia, que os Sinópticos juntamente com o quarto Evangelho dão-nos uma visão completa dessa grande figura.

Apenas uma pequena parte das palavras e das ações de Jesus chegaram até nós por intermédio desses quatro autores, mas essa seleção foi realizada com tanta sabedoria, que O conhecemos mais perfeitamente, mesmo como Pessoa histórica, que qualquer outro personagem de quem se conhece a vida pormenorizadamente. Esta seleção forma não pequeno elemento daquela inspiração dos Evangelhos, que ajudou a cumprir a promessa de Nosso Senhor aos discípulos, segundo a qual o Espírito havia de trazer-lhes à memória o que lhes havia ensinado, com uma maior compreensão dos acontecimentos.

Durante os últimos trinta anos, não se tem deixado de estudar os Evangelhos à luz da chamada "Crítica das formas", que, além das fontes escritas, admite nos Evangelhos outros modelos ou "formas", segundo os quais teriam sido moldados os vários tipos de episódios e de sentenças doutrinárias da primitiva pregação oral. O valor desta aproximação foi exagerado, é certo; mas não deixou de prestar bons serviços, ao lembrar-nos a insuficiência de teorias documentais, que só explicam os fenômenos dos Evangelhos. Por outro lado, salienta a importância de considerar as formas da primitiva pregação e doutrina da Igreja nascente, revelando ao mesmo tempo que a figura de Jesus como Filho de Deus se destaca essencialmente, perpassando todos os Evangelhos. Mesmo nas mais primitivas formas da tradição evangélica, Jesus não deixa de fazer as Suas reivindicações e manter a Sua autoridade, ao perdoar e julgar. Não admira, por isso, que a famosa fonte "Q" de Mt 11.27 e Lc 10.22 seja designada pelo nome de "Quarto Evangelho resumido": "Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar". Este é o tema geral da doutrina expressa no quarto Evangelho. Indícios do mesmo, existem também nas epístolas paulinas e aos Hebreus, no hinário da primeira metade do século II intitulado "Odes de Salomão", nas cartas de Inácio, e mesmo no papiro de Ossirinco com o nome de Ditos de Jesus. Houve quem afirmasse, e não sem razão, que pelo menos dois textos cristológicos do Novo Testamento (fp 2.4 e segs. e parte do Prólogo de João) foram baseados em primitivos hinos cristãos. Em qualquer caso, o aspecto da Pessoa de Cristo, que apresentam, remonta ao tempo do próprio Cristo.

Note-se que o quarto Evangelho insiste neste aspecto da humanidade real de Jesus, de certo por causa das tendências docéticas daquele tempo. Todavia, apesar das diferenças que distinguem este Evangelho dos outros, todos se baseiam no mesmo primitivo kerygma, começando pelo batismo de João e incluindo os principais acontecimentos, a saber: a descida do Espírito Santo sobre Jesus, os Seus milagres, o Seu ministério na Galiléia e em Jerusalém, a Sua prisão, os tribunais do Sinédrio e de Pilatos, a Sua crucifixão, sepultura, ressurreição, ascensão, exaltação nos céus e finalmente a Sua última vinda para julgar os vivos e os mortos.

Uma tradição que remonta ao século II, supõe que o quarto Evangelho foi escrito em Éfeso e não em Alexandria, ou qualquer outra cidade como muitos afirmam. O que é de considerar é a relação existente em cada um dos Evangelhos com determinado núcleo de cristãos: Marcos com Roma, Mateus com Antioquia, Lucas possivelmente com qualquer cidade da Grécia e João com Éfeso. Sabe-se, que outros evangelhos circularam, embora temporariamente, na primitiva cristandade, mas estes quatro, já pelo valor intrínseco, já pela autoridade apostólica (direta ou indireta), transcenderam os limites do espaço e do tempo e em breve foram aceitos pela Igreja Universal. É que cada um deles adaptava-se primorosamente à missão da Igreja no mundo. E assim poderíamos aplicar aos quatro Evangelhos o que João afirma no seu: "Estes foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em Seu nome" (Jo 20.31).

F. F. BRUCE

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